1.2.06

#1 [elementar meu caro Fernandes...]

O arranque das "salas de chuto"
Luís Fernandes, Professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

in Público, 1 de Fevereiro 2006

A poucas centenas de metros da Spitzsplatz, em Zurique, um espaço de cuidados inovador ensaiava um programa de administração terapêutica de heroína. Isso mesmo, heroína. Estávamos em 1994. Avaliado o impacto deste programa na saúde pública e na criminalidade, a população referendou-o positivamente. E hoje, na conservadora Suíça, temos programas destes em mais de metade dos cantões
No início dos anos 90, a discreta Suíça viria para as primeiras páginas dos jornais por razões bem diferentes das que habitualmente a faziam aparecer na arena internacional: a Spitzsplatz, um espaço verde de Zurique mesmo à saída da estação central da cidade, tornara-se um lugar de concentração de toxicodependentes. As fotos da shooting gallery a céu aberto correram mundo, mostrando a que grau podia chegar a degradação em pleno coração dum dos países mais ricos do planeta. Nada que espantasse muito os portugueses, que por essa altura já iam estando habituados às imagens mediáticas do Casal Ventoso.
Como eram possíveis estes cenários? A causa era a droga, evidentemente. A droga, assim enunciada no singular, entidade dotada dum princípio maléfico que arrastava corpos e espíritos para a voragem da dependência sem tréguas. Solução? Difícil, muito difícil. Desintoxicar, tratar, reinserir, diziam os especialistas. E o trabalho terapêutico lá se ia fazendo. A pedra, como no mito grego, chegada ao cimo da montanha, rolava teimosamente pela encosta abaixo. Havia que subir outra vez, numa ida e vinda incessante entre tratamentos e recaídas. Na Spitzsplatz, no Casal Ventoso, juntavam-se entretanto mais e mais toxicodependentes. E veio então o VIH - agora não podíamos preocupar-nos só com a droga, havia as epidemias, o contágio, o problema da saúde pública.
Por cá, o Casal Ventoso tornava-se um caso nacional. Incapazes de fazer sair as drogas da rua, as autoridades pensaram em arrasar o próprio bairro. Entretanto, a Spitzsplatz começava a esvaziar-se dos seus hóspedes e recuperava o seu destino de parque urbano novamente devolvido à cidade do lazer, deixando de atrair fotos de choque às primeiras páginas. Que acontecera? A poucas centenas de metros da Spitzsplatz, um espaço de cuidados inovador ensaiava um programa de administração terapêutica de heroína. Isso mesmo, heroína. Estávamos em 1994. Avaliado o impacto deste programa na saúde pública e na criminalidade, a população referendou-o positivamente. E hoje, na conservadora Suíça, temos programas destes em mais de metade dos cantões.
Relembramos o caso suíço numa altura em que importantes figuras públicas lançaram o debate sobre as salas de injecção assistida. João Goulão, presidente do Instituto da Droga e da Toxicodependência, pronunciou-se já publicamente, em Novembro e em Janeiro últimos, sobre o assunto, mostrando-se favorável à rápida abertura das primeiras estruturas deste tipo. Jorge Sampaio, que desde o início do seu mandato revelou uma particular sensibilidade ao problema das drogas, referiu-se em Dezembro a esta questão, invocando as experiências-piloto em vários países europeus e salientando que o debate deve estar sempre presente e que os governos devem discutir essa situação. O que são "salas de chuto"? E o que significa o facto de figuras com altas responsabilidades na nossa vida colectiva as trazerem para o centro do discurso?
As salas de consumo assistido não são simples estruturas para efectuar consumos em condições higiénicas, resguardando os utilizadores da rua e a rua dos utilizadores. A presença do consumidor problemático neste local é também a oportunidade para realizar acções que dividiremos em: educativas (aquisição e reforço de hábitos saudáveis a nível físico, psicológico e social; educação para a cidadania); encaminhamento para os recursos sócio-sanitários e/ou clínicos já existentes; escuta activa (facilitar um espaço de descarga emocional); enfermagem. Todas estas intervenções estão intimamente relacionadas, tendo como eixo central a educação para a saúde.
A instalação de "salas de chuto" não é uma medida aventureira. Corresponde apenas à constatação muito pragmática do falhanço de décadas de políticas criminalizadoras das substâncias psicoactivas. A solução que propunham era afinal parte do problema. Balanço da "guerra às drogas": cada vez mais vítimas e nenhuns vencedores. O proibicionismo seria responsável por uma série de efeitos colaterais: a prática do consumo injectado como modo de rentabilização de um produto excessivamente caro para o utilizador; mercados de rua fixados nas zonas mais fragilizadas das cidades, contribuindo para o agravamento das suas dificuldades estruturais; a ilegalidade dos mercados como favorecedora do envolvimento no negócio de delinquentes de carreira, reforçando assim a sua posição na hierarquia do crime; a condenação do utilizador regular a uma série de juízos negativos e de perseguições que, em muitos casos, terminam em forte estigmatização e no engrossar do contingente de indivíduos em errância e em exclusão social; a associação do financiamento para o consumo ao pequeno delito urbano e do abastecimento ao crime organizado; os problemas causados à gestão do sistema penitenciário pela chegada à prisão de uma grande quantidade de dependentes de drogas duras; a violência policial contra certos grupos marginalizados com o pretexto da repressão ao tráfico... Dito doutro modo, uma parte importante dos riscos e danos que as políticas de saúde baseadas na redução de riscos procuram minorar são decorrentes, não da natureza química das drogas, não da natureza psicológica dos seus utilizadores - mas do próprio modelo proibicionista.
As salas de injecção assistida devem ser entendidas como uma das respostas num vasto conjunto de políticas de saúde que se dirigem à minimização de danos em populações de consumidores problemáticos duramente atingidas pela longa trajectória de consumos e de insucessos nas tentativas de paragem e ditas, frequentemente, em "exclusão social". A partir do final dos anos 80 são dados passos importantes principalmente em Inglaterra, na Holanda, na Suíça e em Espanha: programas de substituição opiácea com metadona, troca de seringas em meio livre e em meio prisional, salas de injecção assistida, programas de administração terapêutica de heroína. O locus e os intérpretes destas medidas também se modificam: trabalho de proximidade através de equipas de rua, grupos de auto-ajuda promovidos por associações de utilizadores de drogas, envolvimento destes na intervenção.
A experiência de instalação de salas de consumo de menor risco em vários países demonstra que, de início, é sempre uma iniciativa impopular, incompreendida e duramente criticada. Por sua vez, os profissionais de redução de riscos tendem a pensar que este tipo de intervenções se justificam de forma auto-evidente. Estamos perante duas posições de extremo que só o debate pode aproximar. O Dec.-Lei 183 de 2001 consagra já as políticas de redução de riscos em Portugal, incluindo este tipo de salas. O tiro de partida para uma discussão séria foi lançado por vozes autorizadas. Resta, agora, passar à acção, ultrapassando o tique nacional de termos leis muito avançadas, mentes muito esclarecidas e uma passividade que nos tem custado um dos últimos lugares no ranking da União Europeia.