É justo reclamar a anulação da parte
ilegítima da dívida, aquela que foi contraída para sustentar os
benefícios, para garantir a especulação dos grandes bancos...
Texto do jornalista italiano Salvatore Cannavò que traduzi para o Esquerda.net
Uma auditoria à dívida também em Itália
Salvatore Cannavò
NOTAS
Texto do jornalista italiano Salvatore Cannavò que traduzi para o Esquerda.net
Uma auditoria à dívida também em Itália
Salvatore Cannavò
Artigo publicado em ilfattoquotidiano.it em 30 de Novembro de 2011
Se se olhar para os primeiros-ministros dos anos de maior crescimento
da dívida pública italiana, os responsáveis pela situação têm os nomes
da numenklatura democrata cristã e socialista, que lideraram o país
durante 50 anos. E não há dúvidas de que esta dívida está deturpada e
tem raízes clientelares. Mas o crescimento das dívidas foi também uma
escolha das políticas seguidas na Europa nos últimos dez ou quinze anos,
com a aplicação de políticas neoliberais baseadas na hipótese da
redução da pressão fiscal com diminuição dos impostos dos estratos mais
altos da sociedade e do setor privado.
A despesa social em relação ao PIB, em Itália, está em linha com a
receita fiscal entre 1980 e 1990, tendo vindo a diminuir desde então. Se
em 1960 a despesa da saúde era de 10,5% do PIB, em 1994 está em 10,7%,
mantendo-se estável. A despesa com a educação desce de 10,9% para 9%,
enquanto a mal amada despesa das pensões passa de 32,9% em 1960 para
33,6% em 1994. Fazendo a soma dos orçamentos apresentados desde o
governo de Giuliano Amato (1992)1 até agora, ultrapassa-se o teto dos 500 mil milhões, de cortes e “sacrifícios”.
Ao mesmo tempo, assistiu-se a uma miríade de subsídios sem critério,
incentivos e aligeiramentos fiscais estimados em 30 a 40 mil milhões ao
ano2. Mais do que a despesa para as pensões e para o Estado Social.
E há também a política fiscal. Segundo dados do Eurostat, de 2000 a
2010, a pressão fiscal da Europa a 27 passou dos 44,7% para 37,1%, com
uma redução de 7,6%. Os impostos sobre os rendimentos das sociedades
passaram de 31,9 para 23,2%, com uma redução de 8,7%. Se a carga fiscal
total em Itália se manteve mais ou menos estável, sendo reduzida em 0,3%
em dez anos – está destinada a aumentar devido aos efeitos dos
orçamentos do último governo de Berlusconi – aquela que se refere aos
rendimentos das sociedades passou dos 41,3% para 31,4, com uma redução
de 9,9%.
É, pois, justo reclamar a anulação da parte ilegítima da dívida, aquela
que foi contraída para sustentar os benefícios, para garantir a
especulação dos grandes bancos e para suportar uma economia capitalista
que enfrenta uma crise de horizontes e, consequentemente, de rendimento e
que necessita de um balão financeiro para garantir a sua atividade. Tal
como é justo questionar a legitimidade de uma dívida contraída para
aplicar políticas sociais injustas, em violação dos direitos económicos,
sociais e civis dos povos. Foi o que defendeu durante anos o Comité
para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo3, que agora se ocupa das dívidas do “norte do mundo”.
Dos dados disponibilizados pelo Banco de Itália pode concluir-se que
39,2% da dívida pública está nas mãos de investidores estrangeiros,
chegando esta percentagem aos 46,2% se forem considerados somente os
detentores de títulos do Estado. Em 1994, os detentores nacionais
andavam pelos 94%. As famílias, empresas e outros setores controlam
apenas um quarto da dívida. A dívida representa portanto a
estratificação das políticas económicas adotadas até aqui.
Quando se discute a intangibilidade do direito dos credores tem de se
ter em conta o seu perfil (e deverá ser criado um cadastro dos
detentores de títulos para suportar a auditoria). A auditoria que foi
realizada com sucesso no Equador, país que é, obviamente, muito mais
pequeno e simples que Itália, constitui uma referência de um método de
trabalho a seguir. A auditoria, a realizar, com a participação de
associações, cidadãos, comités, etc, serve para radiografar a história
de que se falava no início deste texto, definir responsabilidades e
indicar saídas possíveis (anulação parcial, renegociação, congelamento
de interesses, etc). É certo que não é uma resolução definitiva do
problema, mas pode antecipar soluções: controlo do Crédito, um papel
central da banca pública, instituição de uma verdadeira lei patrimonial,
etc.
O apelo para uma auditoria pública foi já lançado em França por um série de forças sindicais, sociais e intelectuais (www.audit-citoyen.org)
e já superou as 40 mil adesões. Entre os promotores encontram-se forças
sindicais como a CGT e os Solydaires, a ATTAC, o CADTM, economistas
como François Chesnais e Michel Husson, filósofos como Etienne Balibar,
altermundialistas como Susan George. Em Itália este apelo já foi
subscrito por personalidades como Gianni Vattimo e Massimo Carlotto4. Poderá vir a tornar-se num assunto de extrema atualidade.
NOTAS
1
Giuliano Amato chefiou o governo italiano entre 1992 e 1993, num
executivo composto pelo Partido Socialista Italiano, Democracia Cristã,
Partido Liberal Italiano, Partido Socialista Democrático Italiano e
independentes. Entre 2000 e 2001, Amato voltou à chefia de Governo, à
frente de uma coligação de centro esquerda.
2 Cálculos apresentados por Marco Cobiancho, jornalista italiano especialista em economia, no livro “Mani Bucate”, de 2011
4
O primeiro é Eurodeputado independente eleito pela Itália dei Valori
(centro esquerda) e o segundo é escritor. A versão italiana do apelo já
foi entretanto assinada por um conjunto de personalidades ligadas à
esquerda e ao movimento social, estando a decorrer uma campanha nacional
para divulgar a iniciativa: http://www.rivoltaildebito.org/