#2
[Linhas cruzadas]
Tenho a mania da poligamia literária. Não é raro andar agarrado a dois ou três livros ao mesmo tempo, num exercício de evasão que por vezes se revela uma estrada de múltiplas saídas, todas elas com bom argumentos para serem seguidas, ou então um ardiloso campo de obstáculos, onde tropeço e me chego a atolar.
Neste swing, por vezes as coisas misturam-se. Há personagens que têm por hábito dar uma perninha noutro livro e por lá armar grande confusão. Há escritores que se lembram de convidar outros escritores para as suas histórias, numa espécie de sessão de psicanálise ou de convocação de espíritos. Há momentos de premonição absoluta, em que um mistério se resolve nas páginas de outro tomo. Sobre tudo isto, muito haveria para dizer, mas do que quero falar é dos momentos de pura fusão, quando dois livros diferentes se interceptam num ponto nodal.
Como leitor poligâmico, sou suficientemente atento para não me perder e distraído quanto baste para me deixar enredar nestes negócios extra-sensoriais que os livros proporcionam. Deu-se o caso de, numa destas manhãs de primavera que convidam aos livros, ter lido sobre uma das angústias de Daniel Pennac (vénias!): para que escrevemos?
Escrevemos para nos sentirmos em paz mas também com o desejo de sermos lidos, não há maneira de escapar a esta contradição. É como se nos estivéssemos a afogar gritando “Olha mamã, sei nadar!”. Os que clamam mais alto por autenticidade lançam-se de um décimo quinto andar, dando o salto do anjo: “Vejam, sou apenas eu!”. Quando pretendemos escrever sem querermos ser lidos (manter um diário íntimo, por exemplo), equivale a prolongar até ao ridículo o sonho de ser autor e ao mesmo tempo leitor. (in O Ditador e a Cama de Rede).
Mais tarde dei comigo a reler o texto. Confirmei ter captado a ideia lida, mas achei que a abordagem era diversa. Foi então que percebi que tinha chegado a uma zona de interface entre o livro de Pennac e um dos que de momento me acompanham. Nesse Fim de Romance na Patagónia (um dia talvez vos fale das ironias não declaradas que os livros transportam), Mempo Giardinelli acabava de me revelar o ponto nodal:
A minha resposta é sempre a mesma: que não sei, embora saiba que escrevo para ser lido. Não consigo acreditar que alguém escreva, na realidade, para si próprio, ainda que muitos o proclamem. Não creio na escrita onanista e penso que temos sempre o que chamo um “leitor ideal implícito” (…).
Não é espantoso?
É neste momento que o leitor monogâmico – ou a leitora, pois curiosamente esta poligamia é sempre mais incompreendida entre as leitoras com que me vou cruzando - franze o nariz. É pueril a minha conclusão. Nada como um exercício de memória e de disciplinada leitura para juntar estes dois com os outros dois e fazer os quatro necessários à lógica que pretendo montar…
Tudo bem. Dou de barato. Mas não dispenso o prazer que este navegar sem rumo aparente me traz.
Lá dizia o outro, boa noite e bons livros!