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[vistas largas]
Como vão os palestinianos responder à retirada unilateral israelita?
Amos Oz, Escritor israelita
in Público, 24 de Agosto 2005
Os colonos judeus na Faixa de Gaza e na Cisjordânia têm um sonho para o futuro de Israel. Também eu tenho um sonho para o futuro de Israel. Mas o doce sonho deles é o meu pesadelo, enquanto os meus sonhos são, para eles, veneno.
O sonho dos colonos é criar um "Grande Israel" com colonatos judaicos colados uns aos outros. Nesses colonatos só os judeus podem viver e os palestinianos só lá podem trabalhar, empregos modestos com salários baixos. Num Estado assim, a democracia teria de se submeter aos rabis. O Knesset [Parlamento], o Governo, o Supremo Tribunal só seriam autorizados a existir se os rabis aprovassem as suas decisões. Os colonos acreditam que, logo que o Grande Israel se torne numa entidade religiosa e numa "Nação Sagrada", o Messias virá e a total redenção do povo judeu se materializará.
Nesta fantasia dos colonos não há lugar para o povo palestiniano excepto como humildes servos e trabalhadores agradecidos. Mais, na fantasia dos colonos não há lugar para mim, não há lugar para um Israel secular, moderno. Eu e os meus amigos estamos "fora" a não ser que nos arrependamos. Pelo menos não devemos ser obstáculo à construção de mais colonatos nem à expansão dos que já existem. Se nós, israelitas laicos, apagarmos a nossa própria existência, os colonos farão cair sobre nós o seu amor fraterno. Mas se insistirmos que temos uma visão diferente para Israel, imediatamente nos tornaremos traidores, amigos dos árabes, ou até nazis.
No entanto, também nós temos um sonho para Israel, totalmente diferente da fantasia religiosa dos colonos. Queremos viver em paz e em liberdade, mas não sob o poder dos rabis, nem sequer sob o poder do Messias, mas sujeitos a um governo eleito por nós.
Temos um sonho de nos libertarmos da longa ocupação dos territórios palestinianos. Israel e Palestina são, há quase 40 anos, como um carcereiro e um prisioneiro, algemados um ao outro. Depois de tantos anos já quase não há diferença - o carcereiro não é livre e o prisioneiro não é livre. Israel só será uma nação livre quando acabarem a ocupação e os colonatos e a Palestina se tornar um país vizinho independente.
Há 30 anos que os colonos controlam Israel através de vários governos. Eles impuseram a sua visão e esmagaram os nossos sonhos. Eles eram os senhores do país.
O primeiro-ministro Ariel Sharon anda por estes dias a tentar lançar uma espécie de putsch contra o poder dos colonos. Esta é uma tentativa de restaurar a autoridade do governo eleito. Se isto resultar, o sonho dos colonos poderá ser bloqueado e a visão dos israelitas seculares poderá reviver.
A luta em Gaza não é, no essencial, uma luta entre o exército e os colonos, nem sequer entre "falcões" e "pombas". Não. É uma luta entre Igreja e Estado (para ser mais fiel, entre Sinagoga e Estado). Isto é algo por que passaram muitas nações: quais devem ser a posição e a influência da religião e dos clérigos na governação de um país? Alguns países já resolveram isto há séculos. Outras nações andam a tentar resolver isto há tempos infindáveis. O mundo muçulmano, à excepção da Turquia, nem sequer começou.
Nestes últimos dias, em Gaza, testemunhámos o que pode, em retrospectiva, ser a primeira batalha entre a Sinagoga e o Estado em Israel, o primeiro confronto sobre o carácter judaico do único Estado judaico. Somos nós, acima de tudo, uma religião, ou somos nós, acima de tudo, uma nação?
Neste primeiro round parece que o Israel pragmático, racional, secular prevaleceu dolorosamente sobre o Israel fanático. Mas não esqueçamos de que este é apenas o primeiro round. Os colonos e os outros israelitas como nós podem sentir-se orgulhosos com o facto de, ao contrário de muitas guerras sangrentas entre a Igreja e o Estado em vários países, ao longo da História, o primeiro round em Gaza ter sido violento mas não mortífero. Houve muita fúria e ruído mas não massacre. As outras fases serão assim? Será assim quando chegar a altura de desistir da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental em troca da paz com os palestinianos? Estas questões dependem não só dos israelitas, religiosos e laicos, "falcões" e "pombas", da esquerda e da direita.
Estas questões dependem muito da resposta dos palestinianos. Será que os palestinianos olham para tudo isto como um corajoso passo de Israel em direcção a um compromisso histórico com eles? Irão eles retribuir dando passos corajosos em relação aos seus próprios fanáticos? Ou será que eles olham para os confrontos entre judeus e judeus como o primeiro síndroma da desintegração de Israel e vão tentar inflamar a situação interna israelita lançando uma nova vaga de violência e terrorismo?
Diz um velho provérbio árabe que "não se bate palmas só com uma mão". Muito vai depender do modo como os palestinianos interpretarão a luta entre judeus e judeus em Gaza.