6.6.05

#1
[Paira um espectro sobre a Europa...]


A primeira coisa a dizer sobre a proposta de constituição europeia, é que a considero antidemocrática, pois não serve o propósito de uma União feita pelos povos e para os povos.

De
facto, a UE que temos hoje é, tão só, um instrumento da ideia de livre mercado que lhe deu origem. Como tal, temos assistido, desde o momento inicial deste projecto- o tratado de Roma -, ao seu crescimento e estruturação assente em tratados cozinhados pelas lideranças dos países membros sem, na maioria das vezes, dar cavaco aos cidadãos e cidadãs.

Chegados ao momento de assinatura do tratado de Nice, os lideres europeus decidiram que o passo seguinte seria o da formalização do supra-estado europeu que se estava a desenhar e que sempre foi negado, permitindo assim, para lá da economia e do mercado, uma politica de defesa comuns e exigindo a submissão dos estados membros a um quadro legal impeditivo de grandes desvios à linha.

Formou-se então, a mando de Romano Prodi, uma comissão para escrever uma proposta de texto constitucional, substituindo-se desta forma uma assembleia constituinte, directamente eleita pelos povos, por um grupo de tecnocratas que trabalharam num silêncio quase clandestino. Esta é a primeira razão para justificar o défice democrático em questão.

A segunda razão da incapacidade democrática do projecto, prende-se com o facto de este, em nome do mercado e pelo mercado, se sobrepor à legislação dos estados membros, evitando no seu léxico referencias históricas a direitos adquiridos pelas populações no pós guerra, ou seja, evitando comprometer o estado europeu com um modelo social que, cada vez mais, é alvo dos ataques das classes dominantes. Expressões como direito ao emprego ou serviços públicos, por exemplo, são substituídas por eufemismos como direito a procurar trabalho e serviços de interesse geral, que podem significar a mesma coisa (não creio) ou outra coisa qualquer, ninguém sabe. Outras razões existem.

Para dar um ar democrático ao processo, o texto prevê a sua ratificação por cada um dos estados membros, o que serve de argumento para os tecnocratas defenderem a sua génese como a mais transparente de sempre… surgem desta forma os referendos ou a ratificação em parlamento nacional, como aconteceu na Alemanha. E aqui a coisa começou a correr mal, porque o que estava previsto era que esta ratificação fosse uma mera formalidade.

O Não francês
caiu como uma pedrada no charco. Boa parte dos políticos que governaram aquele país nas últimas décadas estavam do lado do sim. Do lado do não encontrámos, um PCF moribundo, que sabiamente se aliou à extrema-esquerda, aos verdes e a um grupo de trânsfugas do PSF, numa frente popular contra o neoliberalismo, por outra Europa possível e social. Desse lado estava também a besta da extrema-direita, com o seu discurso xenófobo e nacionalista, não se verificando confusão possível entre os protagonistas. Estava ainda uma grande maioria que, no dia 27 de Maio, disse NON.

Os comentadores políticos tentaram esconder as razões da derrota, dizendo que os franceses votaram assim pelas razões erradas, em protesto contra Chirac e Rafarin, principais responsáveis por uma politica anti-social em larga escala. Esqueceram-se foi de dizer que esta politica anti-social é fruto das directivas europeias, da abertura do mercado, da primazia do lucro sobre as pessoas, da ideia de que o estado só pode existir para regular os privados e não para distribuir riqueza e recursos com justiça. Para lá disso, dizer que as razões foram as erradas é passar um atestado de estupidez a uma grande maioria que tem, de facto, as suas razões.

Começámos então
a ouvir falar do célebre plano B, uma espécie de fuga para a frente para passar por cima dos votos, numa atitude muito próxima de uma caravana que tem de continuar a passar, apesar o ladrar dos cães… "Dá-se-lhes nova oportunidade para votar, talvez os coitados percebam que foi um erro…" Mas, se as pessoas dizem não, não será tempo de parar para pensar? Se tivesse ganho o sim alguém se iria preocupar em ouvir novemente o povo? Parece que, para auto denominadas as elites, nada disso interessa.

Dias depois
veio o não holandês, mais expressivo, causando menos choque, mas mostrando que o processo está mesmo atrapalhado. Num país onde 85% dos políticos estavam pelo sim, o povo diz não. Volta a falar-se do divórcio das populações com a politica… não terá sido a política a querer, desde o começo, divorciar-se das pessoas para tentar seguir em piloto automático?

A discussão está viciada
. Querem fazer-nos pensar que estas vitorias do não foram mais que expressão de uma rebeldia inusitada, un input errado num sistema que corre sem possibilidade de ser parado, que o futuro é naquela direcção, que esta gente se enganou e põe em risco a própria humanidade… no entanto, a coisa move-se, o descontentamento existe e, com ele, outras ideias de europa começam a ganhar peso.

Paira um espectro sobre a europa, o espectro da democracia. A que recusa o haraquiri e se revitaliza na luta popular, mostrando que esta e aquela não são meros acasos e que, contrariamente aos desejos mais intimos dos cratas, não se encontram derrotadas ou em vias de acabar.