2.11.04

#4
[Uruguay à esquerda]

A vitória da Esquerda no Uruguay amplia as perspectivas que se têm vindo a abrir no sul da américa, esse quase continente devassado por séculos de imperialismo selvagem.
Trinta e um anos depois do esmagamento da Frente Popular de Allende e do sonho do povo chileno, algo parece estar a mudar: Brasil, Argentina, Venezuela, Chile, Uruguay... apesar de alguma frouxidão face às grandes intituições monetárias e às exigencias das multinacionais, estes países têm governos com argumentos e legitimidade para que a bandeira da dignidade e da justiça seja levantada bem alta, em nome dessa enorme massa de gente que nada tem.
Assim o queiram fazer.


Deixo-vos um artigo excelente, do sempre atento Eduardo Galeano, publicado no La Jornada de ontem.

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Águas de Outubro
por Eduardo Galeano

Um par de dias antes de que no norte da América se elegesse o presidente do planeta, no sul da América houve eleições e houve plebiscito num país ignorado, um país secreto, chamado Uruguai. Nessas eleições ganhou a esquerda, pela primeira vez na história nacional, e neste plebiscito, pela primeira vez na história mundial, o voto popular opôs-se à privatização da água e confirmou que a água é um direito de todos.
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O movimento encabeçado por Tabaré Vázquez acabou com o monopólio compartilhado dos partidos tradicionais, que vinham governando o Uruguai desde das origens do universo. —Eu acreditava que haviam ganho os blanco, mas ganharam os colorados — ouvia-se dizer, assim ou o inverso, em cada eleição. Por oportunismo, sim, mas também porque depois, de tanto cogovernar, se haviam convertido num partido único disfarçado de dois. Farta de ser burlada, as pessoas fizeram uso do pouco usado senso comum. Perguntaram-se as pessoas: Por que prometem mudanças e mais uma vez convidam-nos a escolher entre o mesmo e o mesmo? Por que não fizeram essas mudanças se estão há uma eternidade no governo? O vice-presidente do país chegou à conclusão de que este povo perguntão não é inteligente. Nunca se tornara tão evidente o abismo que separava o país real dos discursos caça-votos. No país real, país ferido, onde só se multiplicam os emigrantes e os mendigos, a maioria optou por tapar os ouvidos perante as discursatas destes marcianos a competirem pelo governo do Júpiter com altissonantes palavras vindas da Lua. Nenhum dos donos do poder teve a honestidade confessar: —Estamos todos fodidos. Há trinta e tantos anos brotou a Frente Ampla nestas planícies do sul. "Irmão, não te vás", exortava o novo movimento. "Nasceu uma esperança". Mas a crise foi mais veloz do que essa esperança e acelerou a hemorragia de população que esvaziou o país de jovens. No fim do sonho da Suíça da América começava o pesadelo da pobreza e da violência. A espiral da violência culminou na ditadura militar, que converteu o Uruguai numa vasta câmara de torturas. Depois, quando voltou a democracia, os políticos dominantes exterminaram o pouco que restava do sistema produtivo e converteram o Uruguai num grande banco. O banco quebrou, como costuma acontecer com os bancos quando os banqueiros os assaltam, e ficámos cheios de dívidas e vazios de gente. Agora até os dentistas se queixam: "Pouquinha gente, pouquinhos dentes". Em todos esses anos, de desastre em desastre, perdemos uma multidão. Os jovens são os que mais foram, para procurar trabalho em outras terras, sob outros céus. E para mais vergonha, não contentes em expulsar os rapazes, este sistema esclerótico proíbe-os de votar. O Uruguai é um dos poucos países em que não podem votar os que vivem no estrangeiro, nem nos consulados nem pelo correio. Parece inexplicável, mas tem explicação. Em quem votariam esses votos? Os donos do país suspeitavam o pior. Têm razão.
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No acto final da sua campanha, o candidato à vice-presidência pelo Partido Colorado anunciou que se a esquerda ganhasse as eleições todos os uruguaios seriam obrigados a vestir igual, como os chineses na China de Mao.
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Ele foi mais um entre os muitos involuntários agentes da esquerda triunfante. Nem o mais sacrificado dos militantes fez tanto pela vitória como os tribunos da pátria que alertaram a população contra o iminente perigo de que a democracia caísse em mãos de tiranos inimigos da liberdade e delinquentes inimigos da democracia, terroristas, sequestradores e assassinos. Foram denúncias de grande eficácia: quanto mais atacavam os diabos, mais votos somava o inferno. Em grande medida, graças as esses arautos do apocalipse e ao seu verbo trovejante, a esquerda conseguiu ganhar, na primeira volta, por maioria absoluta. A gente votou contra o medo.
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Também o plebiscito da água foi uma vitória contra o medo. A opinião pública uruguaia sofreu um bombardeio de extorsões, ameaças e mentiras. Ao votar contra a privatização da água íamos sofrer a solidão e o castigo e íamos condenar-nos a um porvir de poços negros e charcos fedorentos Tal como nas eleições, no plebiscito venceu o senso comum. As pessoas votaram confirmando que a água, recurso natural escasso e finito, deve ser um direito de todos e não um privilégio daqueles que podem pagá-lo. E as pessoas confirmaram, também, que não se chupa o dedo e sabem que mais cedo do que tarde, num mundo sedento, as reservas de água serão tanto ou mais cobiçadas do que as reservas de petróleo. Os países pobres, mas ricos em água, têm que aprender a defender-se. Mais de cinco séculos se passaram desde Colombo. Até quando continuaremos a trocar ouro por espelhinhos? Não valeria a pena que outros países submetessem o tema da água ao voto popular? Numa democracia, quando é verdadeira, quem deve decidir? O Banco Mundial ou os cidadãos de cada país? Os direitos democráticos existem deveras, ou são as cerejas que decoram um bolo envenenado? Uns anos antes, em 1992, também o Uruguai fora o único país do mundo que submetera a plebiscito a privatização das empresas públicas. Setenta e dois por cento votaram contra. Não seria democrático plebiscitar as privatizações em toda a parte, tendo em conta que comprometem o destino de várias gerações?
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Nós, os latino-americanos, fomos educados, há séculos, para a impotência. Uma pedagogia que vem desde os tempos coloniais, ensinada por militares violentos, doutores pusilânimes e frades fatalistas, enfiou-nos na alma a certeza de que a realidade é intocável e não temos outro remédio senão tragar no silêncio os sapos nossos de cada dia. O Uruguai de outros tempos fora uma excepção. Contra a herança do não é possível e do não se pode, e contra o costume de confundir o realismo com a obediência e a traição, este país soube ter educação laica e gratuita antes da Inglaterra, voto feminino antes da França, jornada de trabalho de oito horas antes dos Estados e divórcio antes da Espanha (70 anos antes da Espanha, para sermos exactos). Agora estamos começando a recuperar aquela energia criadora, que parecia perdida na longa noite da nostalgia. E não seria mau ter muito em conta que aquele Uruguai dos tempos fecundos foi filho da audácia, não do medo.
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Fácil não será. A implacável realidade não demorará a recordar-nos a inevitável distância que separa o que se quer do que se pode. A esquerda chega ao governo num país roto, que em tempos muito passados esteve na vanguarda do progresso universal e hoje faz fila entre os de mais detrás, um país fundido, endividado até os cabelos e submetido à ditadura financeira internacional, que não vota mas veta. Temos uma reduzida margem de manobra e de movimento. Mas o que na solução é difícil, e até impossível, pode ser imaginado, e até realizado, se nos juntarmos com os países vizinhos como fomos capazes de juntar-nos com os vizinhos do bairro.
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Na primeira manifestação da história da Frente Ampla, que lançou um rio de gente nas ruas, alguém havia gritado, entre assustado e feliz, a partir da multidão: —Corremos o risco de ganhar! Trinta e tantos anos depois, aconteceu. Este país está irreconhecível. Do foi ao é, do é ao será: as pessoas, que andavam tão descrentes que já nem no niilismo acreditavam, voltaram a crer, e crêem com gana. Os uruguaios, melancólicos, parados, que à primeira vez parecem argentinos com valium, andam a bailar no ar. Tremenda responsabilidade para os triunfadores. Para aqueles que foram votados, e para aqueles que os votaram. Haverá que cuidar, como a folha que cuida do fruto, este renascimento da fé, esta refundação da alegria. E recordar a cada dia quanta razão tinha don Carlos Quijano quando dizia que os pecados contra a esperança são os únicos que não têm perdão nem redenção.