17.10.04

#1
[Ponderosa]

Era domingo, o primeiro, de tantos, passado em Inter Rail.
A manhã crescia e eu estava sentado no chão de uma praça em Antuérpia. Nessa noite morrera uma rapariga famosa, com nome de deusa, mas eu ainda não sabia de nada.
Uma orquestra dava o acorde. Fazia calor. Num talão do Multibanco, alinhei algumas palavras que me perseguiam desde Paris... palavras que falavam de um homem que, apesar das voltas do mundo, continuava a ser, na minha cabeça, apenas um homem. Sonhador e, por isso, destemido.
Guardei as palavras no bolso. Mais tarde dei-lhes forma e mais substrato. Continuavam a falar de um homem, de um tal Ernesto, uma sombra que me acompanhou, uma ideia que me acompanha...
Foi um texto que amadureceu e ganhou forma, e, por isso, quase me valeu uma tareia de uns PCs ortodoxos... porque contava a história de outra forma e se atrevia a olhar, mais do que para um mito intocável, para um homem, como tantos outros e tantas outras que conheço e conheci.
É um texto de que me orgulho.
Hoje, depois de uma ida ao cinema, lembrei-me do texto e do que me fez escreve-lo. Decidi postá-lo aqui. Mudei o nome que lhe dei na altura, mas as outras palavras, as que contam, estão lá todas.

GUEVARA

Trazes a boina inflamada pelo rubor da estrela
repleta de um ideal-neon
daquele que compra e vende almas com prazer desbarato.

Vives, ícone musical, dançando a tua memória,
mal liberta da arrogância do pó,
ao som de épicas canções revolucionárias
massivamente transaccionadas,
com os relógios que medem os nossos tempos
ou os isqueiros que acenderam o napalm num qualquer Vietname.

Amigos tens que, em públicos actos de fé desmedida,
prosseguem a tua beatificação
iniciada pelos realistas que nunca exigiram o impossível,
rumo a uma mítica banalidade que te transforma em mais um inofensivo
Marxista, Castrista, Estalinista ou Qualquer-Coisa-ista
em nome de um sonho que não é o teu.

E assim todos te admiram como o homem
que alimentou a fome romântica de um povo global
com travos de havano e atitudes imprevistas...
e há também aqueles que (por ilusão?)
partem de ti em busca da insubmissa força maestra,
serra de liberdade interior
onde o vítreo do teu olhar ainda ecoa puro
lembrando que só se é Homem
se se souber sê-lo.

André, 1997