18.10.04

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[encontros]

Na sexta feira, exortando aos crocodilos alguam boa disposição, fui ver Before Sunset, a sequela de Before Sunrise.
É um filme simples, quase banal, mas guarda em si algo que, como alguém dizia, nos faz desejar. Desejar um encontro inesperado, desejar um amor impossivel ou o impossivel do amor, desejar ser outro noutro lugar, viver a vida dos caminhos que se deixaram de lado... faz-nos desejar o risco, a vertigem, a crista da montanha (onde o vento bate dos dois lados).
É um filme que, a meu ver, evoca aquilo a que Agostinho da Silva chamou saudades do futuro, pondo em evidência que os encontros acontecem, que a vida é um jogo de possibilidades que se abrem a cada momento, pelo que é para ser jogada, mesmo que seja para perder.
Deixo-vos a crónica que Eduardo Prado Coelho escreve sobre Before Sunset, hoje, no público.

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Alguém Duas Vezes
Eduardo Prado Coelho
Público, 18 de Outubro de 2004

Como é bom navegarmos no romantismo como quem toma o "bateau mouche" para percorrer o Sena e se propõe ser um turista da existência
É um filme onde se entra como quem desliza: tudo é previsível, nada deixa de nos surpreender, apenas porque o previsível acontece. Mas o previsível não é de modo algum uma debilidade do argumento. É uma espécie de metafísica, a metafísica envolvente e consoladora a que chamamos "romantismo". Como é bom navegarmos no romantismo como quem toma o "bateau mouche" para percorrer o Sena e se propõe ser um turista da existência! É exactamente assim que este filme faz: "Antes do anoitecer", obra de Richard Linklater, com Julie Delpy (que é o centro irradiante da obra) e Ethan Hawke.
Se o filme é encantadoramente previsível, repito, é porque vai ao encontro daquilo que é em nós a mais ingénua das convicções: o amor tem de acontecer. De certo modo, nesta deambulação por Paris, com cafés, jardins, barcos, traseiras de prédios, só acontece a iminência do acontecer: entre o medo e o pudor, as palavras da paixão terão de explodir. Como tudo é feito de uma elegância ardilosa, é ainda em termos de uma retórica do não-dito que o amor se enuncia: vais perder o avião, 'baby'; já sei. Todo o filme vive neste fio de um tempo de maturação dos sentimentos, sendo o tempo o verdadeiro protagonista, porque é ele que trabalha na transformação da situação.
Há ainda uma outra vertente que nos seduz: tudo acontece duas vezes, e, ao contrário do que quase todos pensam, a segunda não degrada a primeira, mas corrige a primeira. Embora um jogo de dissimulações e fintas verbais vá criando a leve coreografia das mentiras tão óbvias que são apenas a forma mais enternecida e inclinada de dizer a verdade. Tudo bem? Ah, sim, tudo bem. Quer dizer que falhaste a tua história amorosa, que não és feliz, que tendo escolhido acabaste por escolher o que não querias. E o filme fala, fala, fala, nunca se cala, tem um tempo a preencher, tem um não-dito a dizer, é um longo diálogo em tempo real, teria tudo para nos entediar, é o contrário de um filme de acção, e no entanto vai tecendo à nossa volta um fio de deslumbramento (ligado à beleza mítica de uma cidade, Paris, o amor nas ruas, o amor dos lugares, a cumplicidade dos cafés que não há e mais sítio algum).
O romanesco está na livraria mágica e mil vezes celebrada onde o reencontro se faz: "Shakespeare and Company". Continua nas ruelas de Saint-Michel, sobe pelos jardins, desce até ao rio, passa por debaixo das pontes, e dois seres avançam um para o outro no interior de si mesmos, criando a disponibilidade para amar. O filme consegue que lugares, objectos e palavras, formem um tecido passional discreto e oblíquo. Nesse plano a construção do espaço é extremamente bem conseguida e poderíamos dizer, citando o poeta, que o amor é a ocupação do espaço. De tal forma que um disco ou uma frase tornam-se metonímia de um breve encontro que lentamente se prepara para afrontar a prova mais difícil: o quotidiano.
Há um momento admirável: os dois sobem a escada do apartamento de Julie e o tempo de cada degrau é o tempo da própria imagem filmada: estabelece-se um silêncio, que é a palavra no esplendor tácito da sua rasura branca.