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Eles andam aí!
um texto sobre a privatização do Serviço Nacional de Saúde, uma cruzada impulsionado pelo ex assessor do grupo mello e actual ministro da saúde, luis filipe pereira.
John Q. no Centro Hospitalar do Alto Minho
Por EDUARDO JORGE MADUREIRA
Público (local/minho), 12 de Janeiro de 2004
John Q. Archibald é um trabalhador esforçado e honesto que ama profundamente a família. Por isso, fica transtornado quando sabe que Michael, o filho, que vai parar ao hospital por causa de um desmaio num jogo de baseball, precisa de realizar urgentemente um transplante de coração. Mas este homem, que é capaz de fazer tudo para salvar a vida do filho, fica a saber que o seguro de saúde, que sempre lhe levou uma boa parte do seu reduzido ordenado, não contempla o que agora precisa. Uma alínea tramada ou outra razão obscura qualquer permite que a seguradora se escape de pagar a operação do filho. E o dinheiro todo que John Q. tem e o que conseguirá juntar vendendo bens e recolhendo o que os colegas lhe derem também para pouco serve.
O desespero vai-se apoderando de John Q., que começa a perceber que o sistema de saúde não é feito para cuidar de gente sem recursos. Alguém lhe explica, com uma argumentação sólida do ponto de vista económico, que um hospital não é um lugar para a prática da caridade, um hospital vende serviços a utentes. Para a direcção do hospital está, portanto, fora de causa oferecer um socorro. Até este momento, tudo é comum nesta história americana. Uma situação destas pode realmente ocorrer a qualquer pessoa com menos dinheiro. Inabitual é o passo que a seguir dá John Q., a personagem que Denzel Washington interpreta no filme "John Q. - Um Acto de Coragem", realizado por Nick Cassavetes e estreado em Portugal em 2002.
Quando verifica que todas as portas de uma solução se fecharam, John Q. resolve trancar mais algumas. Entra no serviço de urgência do hospital, bloqueia os acessos e toma como reféns todos os que ali se encontram, incluindo os que ali estavam à espera de cuidados médicos. Para contracenar com o protagonista e, claro, para fazer subir a adrenalina, chegam depois Robert Duvall, no papel de um veterano polícia especialista em negociações com sequestradores, e Ray Liotta, que interpreta um impaciente chefe de polícia. Há evidentemente situações que só ocorrem nos filmes. Mas a expulsão de um número cada vez maior de pessoas para as margens dos sistemas de saúde não é, em muitos países "civilizados", uma ficção.
Há percursos que se sabe como começam e não se sabe como acabam. Mas há inícios que prenunciam maus fins. É o caso do caminho que o Centro Hospitalar do Alto Minho quer seguir, celebrando protocolos de investimento com companhias de seguros, tendo como contrapartidas condições de atendimento preferenciais para os seus clientes. É através de pequenos passos - como os que se dão quando se preferem uns em detrimento de outros (e preferir uns significa sempre preterir outros) - que avança a discriminação das pessoas. Entra-se por aqui e nada garante que, na história real do serviço nacional de saúde, num episódio mais à frente, não haja não se sabe quantos John's Q. medrosos e incapazes de qualquer outra reacção que não seja ir dar conta do caso à TVI. Num país decente, o Estado não enfia a saúde dos cidadãos em máquinas de fazer dinheiro. É por isso que, ao contrário do que diz o ministro da Saúde, este não é "um caminho" a seguir.