2.11.13

#1 [sobre o mito do empreendedorismo como salvador da pátria]

 Como sabemos, não podemos prever o futuro e, estritamente falando, não há futuro enquanto não o fizermos, mas se eu pudesse, se eu pudesse arrancava todas as estrelas do céu e dava-as uma a uma ao meu país

Virgínia Trigo - Professora no ISCTE Business School 
Jornal de Negócios, 6 de Maio de 2013


A Hipótese da Panaceia
Como sabemos, não podemos prever o futuro e, estritamente falando, não há futuro enquanto não o fizermos, mas se eu pudesse, se eu pudesse arrancava todas as estrelas do céu e dava-as uma a uma ao meu país
Como um dia disse José Saramago, é preciso sair da ilha para ver a ilha e é daqui, da China onde vivo, que vejo o meu país. E vejo que em Portugal, desde há alguns anos para cá, a palavra "empreendedorismo" corresponde na perfeição à hipótese da panaceia: é cura para todos os males. Nunca nenhuma palavra conteve tanta esperança e tanto embuste. Se é necessário reduzir o desemprego, atribuem-se uns quantos subsídios ao "empreendedorismo", na esperança de que os novos "empreendedores", empreendedores por necessidade, alavanquem o país e criem emprego para si e para uns quantos outros com o seu salão de cabeleireiro, papelaria ou equipamento de jardinagem. Se é necessário promover o "empreendedorismo" criam-se uns quantos concursos e atribuem-se uns quantos prémios a uns quantos jovens inovadores que circulam de concurso em concurso respirando breves lufadas de ilusão. Até um dia. Nesse dia, cinco ou oito anos depois do primeiro concurso, concluem enfim que o acumular de prémios não serve para levar uma ideia ao mercado em tempo útil. Concluem isto sozinhos sem que ninguém, a não ser eles, tire daí uma ilação.

Numa tese de doutoramento recentemente defendida no ISCTE ficou bem provado o problema causado por este tipo de políticas: ao aplicarmos recursos escassos no empreendedorismo por necessidade em vez de os aplicarmos no empreendedorismo por oportunidade – o de muitos desses jovens inovadores ou de empresas existentes merecedoras de modernização – utilizamos políticas adequadas a países em vias de desenvolvimento e não a países de desenvolvimento médio a cujo tipo pertencemos e criamos condições para a existência de uma tempestade perfeita onde uma rara combinação de circunstâncias agrava (como agravou) drasticamente a nossa situação. O desemprego combate-se com políticas de emprego e não com políticas de apoio ao empreendedorismo que, em si, é um comportamento e não uma atividade ou uma profissão e o melhor que um governo pode fazer para o promover é criar e manter um ecossistema onde esse comportamento seja a norma e não a exceção.

Aqui da China, mais talvez do que em qualquer outro lugar, vejo também que um país com dez milhões de pessoas nunca pode aspirar a ser um país de mão de obra intensiva e, por isso mesmo, o desinvestimento na educação e na saúde, além de ser um crime civilizacional, não irá retirar o país da crise, nem agora nem no futuro. E é precisamente nas prateleiras dos supermercados chineses que vejo o nosso futuro: em local bem proeminente, o azeite Gallo, fundado em 1919 por Victor Guedes como diz a etiqueta, desafia as outras marcas. A nossa agricultura. Nos últimos cinco anos o preço dos produtos alimentares subiu em média 30% em todo o mundo. Já é tempo de reinvestirmos na nossa agricultura e de aproveitarmos as vias de comunicação onde pusemos (e continuamos a pôr) o nosso dinheiro e de acabarmos o pouco que falta, antes que se estrague de vez, das ligações verdadeiramente importantes como entre o porto de Sines e o aeroporto de Beja. Ou, como dizia Mário de Sá Carneiro, faltar-nos-á sempre um pouco mais de sol para sermos brasa e um pouco mais de azul para sermos além? Faltar-nos-á um golpe de asa e permaneceremos sempre aquém?

E o nosso mar. Falamos muito do nosso mar ou melhor, da nossa extensão marítima, sem especificarmos que produtos podemos extrair desse mar. Não basta falar da riqueza económica do mar; para que ela seja de facto uma riqueza, temos de dizer em termos concretos quais os produtos económicos que podemos retirar do mar e fazer com que os nossos esforços aí se concentrem. E as nossas universidades. Tal como o sistema de saúde, temos um bom ensino superior, boas universidades e podemos exportar um dos produtos mais rentáveis e de maior efeito multiplicador: a educação.

Como sabemos, não podemos prever o futuro e, estritamente falando, não há futuro enquanto não o fizermos, mas se eu pudesse, se eu pudesse arrancava todas as estrelas do céu e dava-as uma a uma ao meu país.

Professora no ISCTE Business School
Artigo escrito ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico