28.5.12

#1 [As contas com Grillo]

O Movimento 5 Estrelas (M5S), de Beppe Grillo,  fala fortemente à esquerda. Mas a ambivalência acompanhará a parábola, até agora crescente, de um sujeito político que está entre os mais anómalos da história italiana e, como tal, entre os mais imprevisíveis.

Texto do jornalista italiano Salvatore Cannavò que traduzi para o Esquerda.net

As contas com Grillo
 Salvatore Cannavò
 Artigo publicado em Il Fatto Quotidiano, 24 de Maio de 2012.
Será Grillo1 o futuro da política italiana? E da esquerda? É difícil dizê-lo. Apesar de ir de vento em poupa, a sensação de que o movimento é extemporâneo e conjuntural é forte. Não é possível identificar-lhes os elementos culturais de fundo, a ideologia, de um proto-partido que partido, certamente, não virá a ser e que recolhe hoje uma onda de apoio cujas dimensões parecem inesperadas, mas cujo aparecimento não era difícil de prever. Na nossa insistência sobre a necessidade da esquerda radical fazer duas coisas – tornar-se definitivamente autónoma do PD e construir uma novidade política, ligada à necessidade de participação democrática – procurámos sempre defender esta tese. Não tivemos força para afirmar tal hipótese e a grande parte da esquerda radical, e não só Vendola2, não fez nenhuma destas coisas.
Para lá da análise dos fluxos, que não é exaustiva na individualização da natureza política de um determinado sujeito político, o Movimento 5 Estrelas (M5S) fala fortemente à esquerda. Porque agita temas radicalmente ecologistas, porque faz da questão democrática, do controlo e da transparência um ponto diferenciador, porque contesta os aparelhos existentes, alguns poderes constituídos, porque o próprio Grillo descreve, de forma natural, o seu sucesso como a “democracia que bate o capitalismo”. Sobretudo porque se coloca como representante de uma contestação, interclassista mas real, dos equilíbrios existentes, da política tradicional como instrumento de gestão da crise e do governo das suas contradições. Aquilo que deveria fazer, ou deveria ter feito, uma esquerda decente.
Associar este movimento a uma dinâmica de direita, só porque recolheu um amplo consenso no círculo eleitoral de Parma3, constitui um erro. Tal como é um disparatado não reconhecer a natureza aclassista, para lá das corretas reivindicações a respeito do poder económico. A crítica ao capitalismo parece ser mais a de um radicalismo democrático, importante, mas que não esgota o espaço e a ação de uma esquerda de classe. Os factos falarão sobre esta hipótese. Em Parma veremos o tipo de escolhas de fundo que este movimento será capaz de fazer e implementar. Mas a ambivalência até aqui descrita acompanhará a parábola, até agora crescente, de um sujeito político que está entre os mais anómalos da história italiana e, como tal, entre os mais imprevisíveis. E que irá condicionar fortemente as próximas eleições legislativas. Ou seja, um sujeito com que é preciso ter em conta.
Que pensa a esquerda sobre este assunto? A SEL relança a hipótese de uma coligação a três, com PD4 e IDV5, mesmo que construída com base numa forte relação com os sindicatos e o mundo associativo, numa perspetiva clássica que pouco tem de novidade. Mais à esquerda, a Federação da Esquerda6, depois de ter rebatido a sua tradicional identidade, auspicia um centro-esquerda que “olhe à esquerda” na hipótese, nunca abandonada, de uma aliança eleitoral. É caso para dizer boa sorte.
Não sabemos se haverá tempo, e forças, para construir a única perspetiva que poderia irromper verdadeiramente neste cenário: uma coligação anticapitalista, sem a forma de partido, sem uma estrutura rígida ou imaginada em função de proto-partido, não constituída sob uma identidade do passado mas sim uma aliança na qual o movimento social é o verdadeiro protagonista. O movimento contra a Alta Velocidade, as Ocupações Culturais, os movimentos pelo salário social, pelo ensino, pelo salário, contra o Artigo 18, o novo feminismo, o movimento pela água, a aliança dos bens comuns. Tudo isto poderia ter um papel nesta difícil fase italiana, com uma dinâmica aberta, inclusiva, capaz de dialogar e fazer dialogar figuras e instâncias que, de outra forma, não comunicam. Se se quebrassem algumas barreiras sólidas e tentasse fazer uma reflexão comum poderia abrir-se uma nova fase política. A recém nascida Alba7 tentou fazê-lo, mas parece ter-se fechado num projeto autocentrado. Grande parte destas instâncias, não é difícil prevê-lo, serão absorvidas pela dinâmica do M5S. Outras, talvez, olharão para as “listas de cidadãos” que alguns presidentes de Câmara parecem querer promover.
Mas trata-se de uma hipótese que, de momento, não é colocada, como seria útil e sábio, em alternativa ao PD e à sua crise mortífera. Para outros projetos parece ser tarde uma vez que a esquerda perdeu muito tempo em lógicas identitárias e de auto referência. Mas seria interessante, em qualquer caso, se qualquer coisa se movesse e relançasse a partida. De outra forma, “não nos restará mais do que o Grillo”8.
traduzido por André Beja para esquerda.net

1 Beppe Grillo é um comediante, blogger e activista italiano. Em 2009 fundou o Movimento 5 Estrelas (M5S), com um ideário populista, antipartidário e ecologista, que vem fazendo uma forte denuncia da corrupção em Itália. Em 2010 e 2012 o M5S elegeu membros para os conselhos regionais e autarquias e, recentemente, aparece em segundo lugar nas sondagens nacionais, fenómeno que é associado à erosão do PdL de Berlusconi.
2 Nichi Vendola, líder da Sinistra Ecologia e Libertá (SEL) , que ambiciona liderar uma coligação de centro-esquerda – ver último artigo de André Beja no esquerda.net
3 Na segunda volta das autárquicas de Parma, Federico Pizzarotti, do M5S, bateu o candidato de centro esquerda e foi eleito presidente da Câmara até então governada pelo PDL de Berlusconni.
4 Partido Democrático (PD), auto intitula-se de centro e é herdeiro das sucessivas transformações da linha social democrata do antigo PCI,
5 Itália dos Valores (IDV), de centro esquerda, liderado pelo conhecido juiz anti máfia António Di Pietro.
6 A Federação da Esquerda é uma frente que reúne a Refundação Comunista, Comunistas Italianos e algumas associações políticas.
7 ALBA - Alleanza lavoro beni comuni ambiente (Aliança do trabalho, bens comuns e ambiente), movimento fundado em Abril de 2012 por um conjunto de personalidades de esquerda e do movimento social
8 A expressão original “Non ci resta che Grillo” é uma alusão à expressão “non ci resta che piangere” (só nos resta chorar), que também é título de um conhecido filme do humorista Roberto Benigni