O Movimento 5 Estrelas (M5S), de Beppe Grillo, fala fortemente à
esquerda. Mas a ambivalência acompanhará a parábola, até agora
crescente, de um sujeito político que está entre os mais anómalos da
história italiana e, como tal, entre os mais imprevisíveis.
Texto do jornalista italiano Salvatore Cannavò que traduzi para o Esquerda.net
As contas com Grillo
Salvatore Cannavò
Artigo publicado em Il Fatto Quotidiano, 24 de Maio de 2012.
Texto do jornalista italiano Salvatore Cannavò que traduzi para o Esquerda.net
As contas com Grillo
Salvatore Cannavò
Artigo publicado em Il Fatto Quotidiano, 24 de Maio de 2012.
Será Grillo1
o futuro da política italiana? E da esquerda? É difícil dizê-lo. Apesar
de ir de vento em poupa, a sensação de que o movimento é extemporâneo e
conjuntural é forte. Não é possível identificar-lhes os elementos
culturais de fundo, a ideologia, de um proto-partido que partido,
certamente, não virá a ser e que recolhe hoje uma onda de apoio cujas
dimensões parecem inesperadas, mas cujo aparecimento não era difícil de
prever. Na nossa insistência sobre a necessidade da esquerda radical
fazer duas coisas – tornar-se definitivamente autónoma do PD e construir
uma novidade política, ligada à necessidade de participação democrática
– procurámos sempre defender esta tese. Não tivemos força para afirmar
tal hipótese e a grande parte da esquerda radical, e não só Vendola2, não fez nenhuma destas coisas.
Para lá da análise dos fluxos, que não é exaustiva na individualização
da natureza política de um determinado sujeito político, o Movimento 5
Estrelas (M5S) fala fortemente à esquerda. Porque agita temas
radicalmente ecologistas, porque faz da questão democrática, do controlo
e da transparência um ponto diferenciador, porque contesta os aparelhos
existentes, alguns poderes constituídos, porque o próprio Grillo
descreve, de forma natural, o seu sucesso como a “democracia que bate o
capitalismo”. Sobretudo porque se coloca como representante de uma
contestação, interclassista mas real, dos equilíbrios existentes, da
política tradicional como instrumento de gestão da crise e do governo
das suas contradições. Aquilo que deveria fazer, ou deveria ter feito,
uma esquerda decente.
Associar este movimento a uma dinâmica de direita, só porque recolheu um amplo consenso no círculo eleitoral de Parma3,
constitui um erro. Tal como é um disparatado não reconhecer a natureza
aclassista, para lá das corretas reivindicações a respeito do poder
económico. A crítica ao capitalismo parece ser mais a de um radicalismo
democrático, importante, mas que não esgota o espaço e a ação de uma
esquerda de classe. Os factos falarão sobre esta hipótese. Em Parma
veremos o tipo de escolhas de fundo que este movimento será capaz de
fazer e implementar. Mas a ambivalência até aqui descrita acompanhará a
parábola, até agora crescente, de um sujeito político que está entre os
mais anómalos da história italiana e, como tal, entre os mais
imprevisíveis. E que irá condicionar fortemente as próximas eleições
legislativas. Ou seja, um sujeito com que é preciso ter em conta.
Que pensa a esquerda sobre este assunto? A SEL relança a hipótese de uma coligação a três, com PD4 e IDV5,
mesmo que construída com base numa forte relação com os sindicatos e o
mundo associativo, numa perspetiva clássica que pouco tem de novidade.
Mais à esquerda, a Federação da Esquerda6,
depois de ter rebatido a sua tradicional identidade, auspicia um
centro-esquerda que “olhe à esquerda” na hipótese, nunca abandonada, de
uma aliança eleitoral. É caso para dizer boa sorte.
Não sabemos se haverá tempo, e forças, para construir a única
perspetiva que poderia irromper verdadeiramente neste cenário: uma
coligação anticapitalista, sem a forma de partido, sem uma estrutura
rígida ou imaginada em função de proto-partido, não constituída sob uma
identidade do passado mas sim uma aliança na qual o movimento social é o
verdadeiro protagonista. O movimento contra a Alta Velocidade, as
Ocupações Culturais, os movimentos pelo salário social, pelo ensino,
pelo salário, contra o Artigo 18, o novo feminismo, o movimento pela
água, a aliança dos bens comuns. Tudo isto poderia ter um papel nesta
difícil fase italiana, com uma dinâmica aberta, inclusiva, capaz de
dialogar e fazer dialogar figuras e instâncias que, de outra forma, não
comunicam. Se se quebrassem algumas barreiras sólidas e tentasse fazer
uma reflexão comum poderia abrir-se uma nova fase política. A recém
nascida Alba7
tentou fazê-lo, mas parece ter-se fechado num projeto autocentrado.
Grande parte destas instâncias, não é difícil prevê-lo, serão absorvidas
pela dinâmica do M5S. Outras, talvez, olharão para as “listas de
cidadãos” que alguns presidentes de Câmara parecem querer promover.
Mas trata-se de uma hipótese que, de momento, não é colocada, como
seria útil e sábio, em alternativa ao PD e à sua crise mortífera. Para
outros projetos parece ser tarde uma vez que a esquerda perdeu muito
tempo em lógicas identitárias e de auto referência. Mas seria
interessante, em qualquer caso, se qualquer coisa se movesse e
relançasse a partida. De outra forma, “não nos restará mais do que o
Grillo”8.
traduzido por André Beja para esquerda.net
1
Beppe Grillo é um comediante, blogger e activista italiano. Em 2009
fundou o Movimento 5 Estrelas (M5S), com um ideário populista,
antipartidário e ecologista, que vem fazendo uma forte denuncia da
corrupção em Itália. Em 2010 e 2012 o M5S elegeu membros para os
conselhos regionais e autarquias e, recentemente, aparece em segundo
lugar nas sondagens nacionais, fenómeno que é associado à erosão do PdL
de Berlusconi.
2 Nichi Vendola, líder da Sinistra Ecologia e Libertá (SEL) , que ambiciona liderar uma coligação de centro-esquerda – ver último artigo de André Beja no esquerda.net
3
Na segunda volta das autárquicas de Parma, Federico Pizzarotti, do M5S,
bateu o candidato de centro esquerda e foi eleito presidente da Câmara
até então governada pelo PDL de Berlusconni.
4
Partido Democrático (PD), auto intitula-se de centro e é herdeiro das
sucessivas transformações da linha social democrata do antigo PCI,
5 Itália dos Valores (IDV), de centro esquerda, liderado pelo conhecido juiz anti máfia António Di Pietro.
6 A Federação da Esquerda é uma frente que reúne a Refundação Comunista, Comunistas Italianos e algumas associações políticas.
7
ALBA - Alleanza lavoro beni comuni ambiente (Aliança do trabalho, bens
comuns e ambiente), movimento fundado em Abril de 2012 por um conjunto
de personalidades de esquerda e do movimento social
8
A expressão original “Non ci resta che Grillo” é uma alusão à expressão
“non ci resta che piangere” (só nos resta chorar), que também é título de um conhecido filme do humorista Roberto Benigni