17.4.12

#2 [Acordaí!]

Um ano e meio depois de Cavaco ter usado a fome no país como argumento eleitoral, apoiando uma petição para canalização dos restos dos restaurantes para os/as sem abrigo, foi ontem lançada a campanha Zero Desperdício, com alto patrocínio do Presidente da República.
Tenho muito respeito pela fome e por quem luta contra ela, mas há limites de decência que convém não ultrapassar. O da dignidade dos homens e das mulheres que sentem a fome é um deles.

Infelizmente esta campanha, com um nome que tanto se assemelha ao da brasileira Fome Zero embora o princípio libertador não seja definitivamente o mesmo, ultrapassa esse limite de dignidade. E, pelo elogio da caridade, envergonha não só quem tem fome como também quem não gosta de a ver tratada com tanta leviandade.
Dir-me-ão que é uma iniciativa importante para combater a fome e apoiar quem precisa. Pois sim, mas os responsáveis da campanha, com o Presidente à cabeça, não questionam as razões da fome e do desperdício, nem tão pouco a crise e as contradições que a agudizam. Aliás, muitos que dão ou darão o rosto por tal campanha são também o rosto da crise e destas contradições.
O lançamento da campanha foi assinalado com a apresentação de um hino oficial, cantado por algumas das vozes mais emblemáticas de várias gerações e por outras menos emblemáticas mas, ainda assim, com muita saída.
A canção, de questionáveis qualidade e gosto literário, tem por título Acorda (ouçam-na aqui se quiserem). Ao ouvi-la, senti a tal força a crescer-me nos dedos, a tal raiva a nascer-me dos dentes (que terá levado Sérgio Godinho ou Jorge Palma a tal coro?) e dei comigo a pensar em Lopes Graça, que compôs aquela que, sem hipocrisias, deveria ser a canção de luta contra a fome em Portugal - Acordai!

Acordai
Acordai,
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis!
Vinde, no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raiz!

Acordai,
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões!
Vinde incendiar
de astros e canções
as pedras e o mar,
o mundo e os corações!

Acordai!
Acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis!
E acordai, depois
das lutas finais,
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!


in As Heróicas
de Lopes Graça