A crise morde cada vez mais e o futuro
anuncia-se péssimo. Diante da “constituinte” do capitalismo europeu, na
qual Monti se coloca, é necessária uma ideia análoga e alternativa. Não é
o momento de estreitamento e sectarismos.
Texto do jornalista italiano Salvatore Cannavò que traduzi para o Esquerda.net
Um ano difícil, de crise, de postos de trabalho em falta e de precariedade que se propaga. É certo que a notícia da demissão de Berlusconi contribuiu para aligeirar a raiva e a tensão, mas, se se passar a pente fino o orçamento da Segurança Social, verifica-se que em 2010 os trabalhadores e as trabalhadoras que recorreram ao programa de apoio ao lay off e aos subsídios de mobilidade e desemprego foram cerca de 4 milhões. Além destes, há também pelo menos 2 milhões de desempregados e outros tantos trabalhadores precários. Precariedade, incerteza, frustração, receio pelo futuro, preocupam pelo menos 8 milhões de pessoas em idade ativa, numa altura em que quem já está reformado vê os seus rendimentos a diminuir e quem trabalha teme ser despedido. É a crise em carne e osso, não aquela dos gráficos de “crescimento” usados por Mario Monti na conferência de imprensa de fim de ano.
Texto do jornalista italiano Salvatore Cannavò que traduzi para o Esquerda.net
Um ano difícil, de crise, de postos de trabalho em falta e de precariedade que se propaga. É certo que a notícia da demissão de Berlusconi contribuiu para aligeirar a raiva e a tensão, mas, se se passar a pente fino o orçamento da Segurança Social, verifica-se que em 2010 os trabalhadores e as trabalhadoras que recorreram ao programa de apoio ao lay off e aos subsídios de mobilidade e desemprego foram cerca de 4 milhões. Além destes, há também pelo menos 2 milhões de desempregados e outros tantos trabalhadores precários. Precariedade, incerteza, frustração, receio pelo futuro, preocupam pelo menos 8 milhões de pessoas em idade ativa, numa altura em que quem já está reformado vê os seus rendimentos a diminuir e quem trabalha teme ser despedido. É a crise em carne e osso, não aquela dos gráficos de “crescimento” usados por Mario Monti na conferência de imprensa de fim de ano.
O ano de 2012 anuncia-se ainda pior, com Itália em recessão, o espectro
da crise bancária, a hipótese, até agora técnica, do fim do Euro. Neste
cenário, o facto de haver milhões de pessoas que hoje acreditam que o
atual governo pode conduzir o país para fora da crise é compreensível,
embora seja uma ideia errada. Nestas páginas já escrevemos diversas
vezes: Monti representa um projeto italiano e europeu – confirmado pelos
telefonemas entre Merkel e Napolitano1
e que está para lá das versões oficiais – que tenta salvar a Europa do
buraco em que se meteu por causa da competição internacional. E esta
partida joga-se apenas num campo: a abolição ou redução drástica do
modelo social europeu. Pensões, saúde, trabalho público, serviços,
direitos dos trabalhadores e trabalhadoras deverão deixar de ser aqueles
que conhecemos ao longo dos últimos quarenta anos. É preciso andar para
trás, mais para trás do que pensaram o próprio Berlusconi, Tremonti ou
Sacconi2. É preciso cortar a carne viva e, não temos dúvidas, as lágrimas de Elsa Formero3 são produto da consciência disso mesmo. Com isto não nos seduzem.
É difícil acreditar que tal opção possa produzir resultados
satisfatórios, nomeadamente para quem trabalha ou se vê confrontado com
um rendimento miserável. Seguramente ajudará a banca e as grandes
multinacionais ou, melhor, uma parte delas. O problema, antigo, é sempre
o mesmo: a massa crítica necessária para desenhar uma alternativa.
Nestes anos de crise não surgiu ainda uma iniciativa dos movimentos
sociais e da esquerda que consiga abalar significativamente a própria
gestão da crise. A estagnação é dramática e não é prolongável. Por isso
se olha com esperança experiências como Occupy, as revoltas
árabes, os indignados ou os lampejos que se viram em Itália no 15 de
Outubro: não para exaltar mais do que a conta estes importantes
fenómenos mas porque constituem bases de uma possível revolta ou, pelo
menos, de uma reação defensiva. Mesmo que não sejam o suficiente.
Neste sentido, em 2012 temos responsabilidades importantes. É
necessário restabelecer um quadro unitário de lutas e resistências que
sejam capazes de pesar “politicamente” não no sentido de uma forma
partidária ou eleitoral mas num sentido mais alargado do termo. Mesmo
não tendo obtido resultados imediatos, o movimento altermundialista
continua a ser um sujeito político de referência, que desafiou partidos e
governos de todo o mundo. Na América latina algumas das suas ideias
foram mais tarde aplicadas. Necessitamos de restaurar uma massa crítica
análoga, com as devidas diferenças, mas os estreitamentos que se podem
observar nesta recta final do ano não só não ajudam como são altamente
perigosos. De onde quer que provenham.
É verdadeiramente o momento de uma unidade alargada em torno de
objetivos partilhados e partilháveis: a discussão da dívida, a partir da
proposta de uma auditoria sob controle dos cidadãos, a partir do Artigo
184,
a defesa dos salários e das pensões, uma lei patrimonial e um fisco que
vise os rendimentos e os lucros, um salário social que não seja um
expediente para desmembrar direitos adquiridos mas sim para contrastar
com a extorsão praticada pelas empresas, a tutela e o largamento dos
bens comuns (incluindo-se aqui a informação), a paz e o desarmamento, o
alargamento da democracia, que se faz também com os referendos. Os
pontos a valorizar estão identificados e, no fundo, são os mesmos de há
dez anos, com exceção da dívida. Mas hoje são reavivados por um processo
“constituinte” de uma nova Europa, de um quadro mundial em tudo novo e
de uma Itália que não voltará a ser a mesma. Também para quem se bate
por uma sociedade diferente, por uma alternativa de sociedade – com
todas as variações e diferenciações possíveis –, é o momento de definir
um percurso “constituinte” de movimento, assumindo a responsabilidade do
tempo presente.
Salvatore Cannavò
Publicado em Il Megafono Quotidiano a 31 de Dezembro de 2011.
Tradução de André Beja para esquerda.net.
1
Antes de nomear o atual governo de Itália, o presidente Napolitano
consultou um conjunto de personalidades, onde se incluía Angela Merkel
2 No último governo de Berlusconi, Tremonti ocupava a pasta da economia e Sacconi a do trabalho e políticas sociais
3
Formero é ministra do Trabalho do executivo de Mário Monti. As lágrimas
que verteu na apresentação do programa de governo correram mundo e
foram apelidadas por Cannavò, num outro texto de opinião, como lágrimas
de crocodilo.
4
Artigo da lei do trabalho italiana que garante que o despedimento só
pode ocorrer por justa causa. A alteração deste artigo é um dos grandes
objetivos do governo de Mario Monti, tendo a sua defesa sido colocada no
centro da mobilização sindical e social.