10.11.09

#1

[As minhas memórias do muro]

I

A cidade abria-se debaixo dos nossos pés. Estava sol.

De repente, dei com o seu sorriso expectante. Soube de imediato que ela vira algo que me ia surpreender.

Rodei sobre mim e foi então que vi o Muro. Ou um pouco do dele sobrava .

Emocionado, acariciei o betão, tentando roubar-lhe um pouco de memória.

II

A fúria de apagar as diferenças era por demais evidente. Mas, apesar dos esforços, havia ainda, nesse verão de 2000, um muro que se pressentia.

A cidade era desigual na arquitectura, com a do socialismo dito real e a degradação da arte nova nos nos bairros de leste a contrastar com o clean ocidental. Mas também a simpatia diferenciava aqueles que, anos antes, haviam recordado ao mundo que eram um só povo.

As gruas pareciam ser um elemento natural da paisagem. Foi a partir daí que a imagem desses gigantes que espreitam por entre os espaços abertos das cidade passou a ser por mim designada como “paisagem berlinense”.

III

No bolso trazíamos moedas de 2,5 escudos, tão parecidas com as de meio marco que as máquinas de chocolates as multiplicavam por 40 e ainda davam troco.

Procurávamos sinais do passado, o ar que inspirara David Bowie ou os U2, os restos dessa efusiva felicidade que me recordava ter visto na TV numa noite de quinta-feira (haverá algum convénio para que os grandes dias sejam à quinta?). Encontrámos um pouco de tudo isso e ainda mais: um sonho de uma noite de verão à beira do Spree com lua cheia, um chá e a vodka na casa de amizade da RDA e da República Soviética do Cazakistão, uma tempestade de verão, os restaurantes turcos, os jardins nos logradouros, os bares cheios de vida, gente a cuspir fogo, o inconfundível som dos trabants...

IV

Nos dias que se seguiram à queda, Stefan insistiu em dar o seu contributo para desmantelar a cortina de ferro. Como era um visionário, apesar de ter 6 anos, insistiu em guardar aquelas pedras. Martina, que já devia estar a sentir uma certa ostalgia bem disposta que a caracteriza, não teve como recusar a exigência do filho.

O Muro ficou lá por casa, como se fosse parte da família. E ainda hoje lá devam estar alguns desses pedaços de memória, guardados numa caixa de sapatos que se vai esvaziando à medida que viajantes ocasionais ou amigos de outras latitudes, como eu, lhes vão ocupando o sofá.