#1
[As minhas memórias do muro]
I
A cidade abria-se debaixo dos nossos pés. Estava sol.
De repente, dei com o seu sorriso expectante. Soube de imediato que ela vira algo que me ia surpreender.
Rodei sobre mim e foi então que vi o Muro. Ou um pouco do dele sobrava .
Emocionado, acariciei o betão, tentando roubar-lhe um pouco de memória.
II
A fúria de apagar as diferenças era por demais evidente. Mas, apesar dos esforços, havia ainda, nesse verão de 2000, um muro que se pressentia.
A cidade era desigual na arquitectura, com a do socialismo dito real e a degradação da arte nova nos nos bairros de leste a contrastar com o clean ocidental. Mas também a simpatia diferenciava aqueles que, anos antes, haviam recordado ao mundo que eram um só povo.
As gruas pareciam ser um elemento natural da paisagem. Foi a partir daí que a imagem desses gigantes que espreitam por entre os espaços abertos das cidade passou a ser por mim designada como “paisagem berlinense”.
No bolso trazíamos moedas de 2,5 escudos, tão parecidas com as de meio marco que as máquinas de chocolates as multiplicavam por 40 e ainda davam troco.
Procurávamos sinais do passado, o ar que inspirara David Bowie ou os U2, os restos dessa efusiva felicidade que me recordava ter visto na TV numa noite de quinta-feira (haverá algum convénio para que os grandes dias sejam à quinta?). Encontrámos um pouco de tudo isso e ainda mais: um sonho de uma noite de verão à beira do Spree com lua cheia, um chá e a vodka na casa de amizade da RDA e da República Soviética do Cazakistão, uma tempestade de verão, os restaurantes turcos, os jardins nos logradouros, os bares cheios de vida, gente a cuspir fogo, o inconfundível som dos trabants...
IV
Nos dias que se seguiram à queda, Stefan insistiu em dar o seu contributo para desmantelar a cortina de ferro. Como era um visionário, apesar de ter 6 anos, insistiu em guardar aquelas pedras. Martina, que já devia estar a sentir uma certa ostalgia bem disposta que a caracteriza, não teve como recusar a exigência do filho.
O Muro ficou lá por casa, como se fosse parte da família. E ainda hoje lá devam estar alguns desses pedaços de memória, guardados numa caixa de sapatos que se vai esvaziando à medida que viajantes ocasionais ou amigos de outras latitudes, como eu, lhes vão ocupando o sofá.