14.11.08

#1
[em jeito de tributo]

Carta aberta a João Cravinho
Público, 7 de Maio de 1999
João Martins Pereira
Meu caro João,

Desde os tempos do 40.900 [luta estudantil de 1959*] até hoje, estivemos várias vezes no mesmo barco, ou em barcos próximos. Mas mesmo quando o teu barco se afastou para águas socialistas, já lá vão uns 20 anos, nem por isso deixámos estiolar a nossa velha amizade e com mais ou menos frequência nos fomos encontrando e sempre comentando apimentadamente a política do tempo.

No momento presente, pareceu-me que seria insuficiente, para mim, mais um desses encontros, em que, entre duas garfadas de cozido, debatêssemos o que vai por cá, e pelo mundo. É que o que vai pelo mundo, mais propriamente por esta Europa que se dá a ver como berço e estandarte da “civilização ocidental”, é grave demais para ficar balizado por uma bela hora de conversa bem-humorada, finda a qual cada um vai à sua vida. Tu, em particular, à tua de ministro de um governo em guerra.

Na verdade, por mais voltas que lhe dê e por mais que pondere as diferenças de contexto, os bombardeamentos da Sérvia não podem deixar de me lembrar o crime gratuito de Dresden em 45, e os dos Estados Unidos no Vietname, isto para só lembrar casos protagonizados pelos aliados de hoje. Todos têm em comum a arrogância dos estados-maiores militares, quando em situação de esmagadora superioridade de meios e o desprezo absoluto pelas populações civis que, supostamente, se pretende “libertar” e reconduzir à “convivência democrática”. Como se, antes de serem “salvas”, essas populações tivessem de ser castigadas. Em suma, têm em comum o facto de serem bárbaras, o que é justamente o oposto de “civilizado”, na acepção mais corrente.

Ponho-me a imaginar o que pensaríamos nós, ao tempo de Salazar, se uma qualquer grande potência do momento, a pretexto dos métodos insuportáveis de tal ditadura, aqui e nas colónias, decidisse arrasar o país, como prelúdio para a “instauração da democracia”. Vejo-me, vejo-nos a todos nós, a unirmo-nos decididamente contra o abominável agressor. Mas não. Nesse tempo a potência dominante, a mesma de hoje, andava entretida muito simplesmente a sustentar ditadores ao pé dos quais o Salazar era um aprendiz: Franco (que teria no seu activo bem mais vítimas do que Milosevic), Somoza, Batista, Trujillo, Perez Jimenez e tantos outros. Isto antes de colocar no poder Pinochet, e enquanto os seus aliados europeus faziam o mesmo em África com os Bokassa, Mobuto ou Hassan (o amigo do dr. Soares).

Por isso mesmo, não me venhas falar em direitos humanos ou em protecção de populações (minoritárias ou não). Duvido que os albaneses do Kosovo estejam agradecidos à NATO pela “protecção” que, alegadamente, teria estado na origem das operações. Uma coisa é certa: pelo menos adquiriram o direito a “refugiar-se”, nas terríveis condições que se conhecem. E adquiriram outro, esse em comum com os sérvios : nunca mais se irão ver livres dos seus intitulados protectores. Porque, acabada a violência e a destruição (e hão-de acabar, talvez em breve, evitando, se assim for, os sérios riscos de alargamento do conflito), os “senhores da guerra” virão generosamente presidir à reconstrução, pois se até já se fala dos famigerados protectorados!

Aos negócios da guerra — pense-se só nas indústrias (e na investigação) de armamentos e munições — sucederão os negócios “da paz”: novas pontes, novas centrais, novas estradas, novos aeroportos, novos edifícios, novas televisões. Os aliados de hoje precipitar-se-ão com meios financeiros e materiais, com engenheiros, arquitectos, economistas, peritos, consultores, assessores. Os Balcãs tornar-se-ão num imenso estaleiro, mas os homens que lá viviam não serão mais os mesmos e, ainda que regressem, mal se reconhecerão no novo “território” que lhes será outorgado. Perder a vida não é só tornar-se cadáver: é perder a dignidade, perder o habitat, quando não perder a família, porventura dispersa por países ignorados.

Ainda há algo mais. A guerra é sempre detestável. Mas a guerra dita “limpa”, em que à partida o agressor se dá ao luxo de não ter vítimas, de nem sequer ser forçado a olhar de frente aqueles que vai matar ou destruir, isto é, a guerra dispensada de sofrimento próprio, a guerra-passeio de quem está seguro de ganhar em pouco tempo, a guerra-teste de armamentos, essa guerra tem algo de obsceno. Só terá um pequeno inconveniente: também se dispensam os heróis. Isso será apenas, para os militares, inebriados com as suas altas tecnologias, um “dano colateral”.

A Europa, nisto tudo, fez um pouco a figura das claques futebolísticas, que gritam quanto podem, mas não jogam. Blair e Chirac têm sido os grandes chefes de claque e, diga-se, também muito contribuíram para pôr a bola em jogo. Mas, a partir daí, ficaram nas mãos da sra. Albright e dos estados-maiores da NATO, que, bem vistas as coisas, bem precisavam de uma coisa destas para redefinirem o seu papel no pós-guerra fria. Depois disto, a Europa também não será a mesma, se é que ainda será alguma coisa.

Para que não restem dúvidas: os perdedores nesta tragédia serão obviamente os kosovares, que não têm culpa que o “Ocidente” tenha apostado no UÇK para a sua “libertação”, e os sérvios, que não souberam, ou quiseram, ou puderam livrar-se do Milosevic, pelos meios apropriados, enquanto era tempo.

Meu caro João, (também) eu “tive um sonho”: que uma eventual saída tua do Governo (de que falam alguns jornais) se não devesse a uma suposta escassez de obras públicas em período pré-eleitoral, ou a uma promoção à Comissão de Bruxelas, mas a um vigoroso murro na mesa em protesto contra esta guerra inacreditável!
Embora não possamos esquecer o precedente trágico da engrenagem aparentemente imparável que levou à Grande Guerra (“pourquoi ont-ils tué Jaurès?”), nenhuma guerra é inevitável. Disso falaremos talvez um dia, a uma qualquer sobremesa. Engenheiro

* A nota introduzida no texto refere a data de 1959, mas foi em 1957 (ou mesmo, mais precisamente, em 31 de Dezembro de 1956) que teve início a luta estudantil contra o decreto n.º 40.900, que punha fim à autonomia das associações de estudantes e as colocava sob a tutela da Mocidade Portuguesa.

João Cravinho, então presidente da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico, foi, assim como João Martins Pereira, um dos líderes dessa luta, que terminaria com a suspensão do diploma.