1.9.08

#1
[contraditório]

Muito se tem dito sobre a escalada do conflito entre a Rússia e o resto do mundo.
Estava no Báltico quando a coisa estalou. A pouca informação a que tive acesso na altura era muito influência pelo medo daquilo que os Russos poderiam vir a fazer.
Quando voltei percebi mais algumas coisas, e não me espantei ao constatar que, também por cá, o tom do discurso é, quase sempre, de ataque aos russos.
Não estando de acordo com a intervenção na Geórgia, penso que é útil ouvir o que Moscovo tem para dizer...

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A Geórgia foi a gota de água para a Rússia

Público, 01.09.2008,
Oleg Shchedrov, Moscovo

Uma sensação aguda de que o Ocidente enganou Moscovo em relação a melhores laços depois da guerra fria explica por que é que a Rússia, recuperada do colapso pós-soviético, não ignorou a acção da Geórgia e exigiu ser ouvida.
"Podia ter sido a Geórgia ou outra coisa, mas qualquer espécie de gota de água estava aí para vir", comentou um responsável do Kremlin. "Não podemos retirar sempre com um sorriso."
A resposta militar da Rússia à tentativa da Geórgia de retomar as suas províncias separatistas, apoiadas por Moscovo, da Ossétia do Sul e da Abkházia - e agora o reconhecimento da sua independência - aumentou a especulação no Ocidente de um contra-ataque de um ressurgido império soviético. Mas, vista de Moscovo, a situação parece completamente diferente. A Rússia está frustrada com o que vê como sendo o falhanço do Ocidente em cumprir a promessa de pôr as suas relações em planos iguais e com as suas tentativas de cercar a Rússia com um novo "cordão sanitário".
A amargura vem já da década de 1990, quando o Presidente soviético Mikhail Gorbatchov, ansioso por lançar uma nova era nas relações com o Ocidente, concordou com a retirada de tropas da Alemanha de Leste e em dar luz verde à unificação da Alemanha. A Rússia diz que a NATO renegou uma promessa crucial. "A única condição de Moscovo era que a NATO não colocasse tropas na Alemanha de Leste", diz um diplomata russo envolvido nas negociações. "A promessa foi feita, mas logo foi esquecida." Alguns responsáveis da NATO negam esta afirmação.
Nos anos seguintes, as relações com o Ocidente foram levadas a um ponto ainda mais tenso, quando a NATO integrou os países satélites da época soviética do Leste europeu e as antigas repúblicas soviéticas do Báltico - Estónia, Letónia e Lituânia. A Polónia e os Estados bálticos tornaram-se críticos da Rússia dentro da aliança.
Em 1999 a Rússia protestou contra os bombardeamentos da NATO em Belgrado numa campanha militar que acabou por levar, em última análise, a que o Ocidente reconhecesse a independência da província separatista sérvia do Kosovo em Fevereiro deste ano.
Altos responsáveis russos queixaram-se de que a cooperação de Moscovo com o Ocidente em questões fulcrais como a luta contra o terrorismo, o Afeganistão, o Irão e a Coreia do Norte não se têm traduzido numa melhoria das relações. "Há uma sensação de que o Ocidente trata a Rússia apenas como o perdedor da guerra fria, que tem de seguir as regras dos vencedores", disse uma vez Vladimir Putin.
Nos anos 1990, quando a economia russa estava em ruínas, Moscovo escondeu o seu orgulho. Mas o boom dos últimos oito anos permitiu que a Rússia tivesse um papel mais assertivo na economia global e diplomacia internacional. Moscovo decidiu usar um tom diferente. O Ocidente não notou a diferença.
Putin e o seu sucessor Medvedev pediram ao Ocidente que tratasse a Rússia como um parceiro igual num contexto europeu alargado e revisse os acordos de segurança para ter em conta os seus interesses. Mas os protestos russos foram ignorados mais uma vez, diz Moscovo, quando Washington decidiu estacionar elementos do seu escudo antimíssil na Europa de Leste. A acção foi vista por Moscovo como uma ameaça directa à sua segurança, apesar da insistência dos EUA de que serve para repelir um potencial ataque do Irão e não é uma ameaça à Rússia.
Os EUA também pressionaram muito para a integração na NATO da Geórgia e Ucrânia - algo a que Moscovo se opõe fortemente pelos seus profundos laços históricos com estes países.
A Rússia enviou sinais de que a paciência estava a esgotar-se, mas o Ocidente desvalorizou-os, tomando como retórica um discurso duro de Putin em Munique em 2007. De modo semelhante, o Ocidente não reagiu a outros "tiros de aviso" de Moscovo, como voltar a fazer voar bombardeiros sobre o Atlântico e suspender as obrigações da Rússia num pacto sobre armas convencionais na Europa. A intervenção na Geórgia mostra que a Rússia tinha estabelecido um limite.
"A 'entente cordiale' não funcionou", disse o embaixador da Rússia à NATO, Dmitri Rogozin. "As relações devem agora ser pragmáticas", afirmou. "A boa prestação do nosso Exército na Ossétia deixou uma impressão nos nossos parceiros", acrescentou. "Devemos fazer tudo para manter esta impressão e terminar de uma vez por todas com qualquer tentação de os nossos parceiros resolverem os problemas pela força."