14.12.05

#1
[para mais tarde recordar...]


Marcado para morrer
Nuno Pacheco
in Público, 14 de Dezembro de 2005

A execução de Stanley Williams na Califórnia prova, mais uma vez, que o sistema baseado na pena de morte é não apenas injusto como repelente
Soube-se logo de manhã: executaram Stanley Williams. Como n" A Colónia Penal de Kafka, alguém quis provar que a máquina funciona, na sua fria implacabilidade. Sem atentar nos pormenores sórdidos da execução, estava em causa não apenas uma vida (o que é essencial para quem se opõe, em qualquer caso, à pena de morte) mas também uma lógica. Que homem morreu, na madrugada de ontem? O violento Stanley que aos 17 anos criou um temível gang de marginais em Los Angeles, os Crips? O condenado à pena máxima em 1981, acusado de ter morto a tiro quatro pessoas? O militante pacifista que em 1996 denunciou, em vários livros dirigidos aos estudantes do básico, a violência dos gangs quer outrora ajudou a criar? O autor do livro Life In Prison? O promotor do projecto "para a paz nas ruas", lançado na Internet com jovens de diferentes países? O homem nomeado várias vezes para o Nobel da Paz e pelo menos uma para o Nobel da Literatura? O laureado pelo Presidente dos Estados Unidos pela sua acção cívica?
Quantos homens habitam um homem? Quantos por ele passam, tornando-o diferente, outro, ainda que sob a mesma identidade? Quem dirige, hoje, os destinos da América? O alcoólico displicente dos anos 70? Ou o republicano liberal e religioso dos anos 90? E quem se senta na cadeira da presidência da Comissão Europeia? O maoísta convicto dos anos 70? Ou o social-democrata dos anos 90? O que pesa mais na vida de um homem que ascende a cargos vitais para o seu país ou para o mundo? O seu passado? Ou o seu presente? Nos casos, citados, de Bush Jr. e Durão Barroso, ninguém duvidará: o seu presente. No caso de Stanley, sucedeu o inverso: apesar do caminho percorrido, apesar de uma absoluta (e reconhecida, até pelo Presidente dos EUA) mudança na sua vida e personalidade, o que pesou foi apenas o passado. E por isso o mataram. Dir-se-á: uma coisa são devaneios ou erros de percurso, outra são crimes. Sem dúvida. Mas Stanley terá sido, de facto, o autor material das quatro mortes contabilizadas nos anos 70? As provas, como alertou por diversas vezes a insuspeita Amnistia Internacional, foram produzidas com base "em testemunhos de criminosos que estavam presos ou no corredor da morte pelos mais variados crimes e que beneficiaram de reduções de pena ou foram libertados em troca de testemunhos". Na sordidez de San Quentin, a vida é apenas um negócio passageiro. Não, A Colónia Penal de Kafka não está assim tão longe da Califórnia. Porque a morte, ou melhor, o abate impiedoso de Stanley Williams serviu apenas para provar que a máquina funciona e é cega para sobreviver. Assim como sobreviveram os que, à custa da morte de Stanley, salvaram a própria pele. O mais absurdo, ainda, é o facto de um homem passar 24 anos atrás das grades, ser modificado por elas, alterar por completo o seu comportamento e atitude perante o mundo e, no preciso momento em que é louvado e aplaudido, tirarem-lhe a vida por um crime supostamente praticado há quase três décadas. Kafka? Não só: a execução de Stanley prova, mais uma vez, que o sistema baseado na pena de morte é não apenas injusto como repelente. Porque conseguiu o prodígio de poupar um criminoso e, muitos anos depois, matar o homem decente que nele nascera. Para ser abatido em seu lugar.