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[gaza, palestina]
Dó de quem?
Alexandra Lucas Coelho, Jerusalém
Publico, 20 de Agosto de 2005
Dó dos colonos.
A mulher a imolar-se pelo fogo, os velhos rabis a correrem com a Tora nos braços, os ortodoxos a rezarem a última oração, as mães a apertarem bebés ao colo, os jovens a serem arrastados por braços e pernas, o soldado a chorar amparado à sua irmã, os tanques, os gritos, as chamas, a guerra.
Dó?
Perguntem a Mohammad.
Quando os seus foram expulsos não ocupavam terra alheia. Não receberam compensações financeiras. Não tiveram caravillas, moshav, kibbutz, cidades que os acolhessem. Não causaram dó em directo. Eram centenas de milhares e não tinham um país seu.
Até agora não têm.
Ou como Mohammad diz: "Tenho 18 anos e ainda não vivi um dia bonito."
Os colonos viveram muitos dias bonitos, nas suas casas bonitas, com jardins bonitos, à beira de praias bonitas. Gush Katif era o paraíso que Deus prometeu, Israel alimentou e os homens fizeram, a partir dos anos 1970. Sharon lá estava, soprando para que crescessem. Seculares e religiosos, funcionários e agricultores, nascidos em Israel ou recém-chegados. Por que não? Se o lugar era tão fértil. Se o clima era tão bom. Se o governo pagava.
Assim foi, em Gaza. Quase 9000 colonos para os dias bonitos. Quase um milhão e meio de palestinianos para os dias feios.
Um dia de Mohammed Abu Adel, por exemplo. "Acordo com os tiros israelitas e durmo com os tiros israelitas." Entre os dois tiroteios, tenta ir às aulas, subindo todos os dias os 40 quilómetros que vão de Rafah, no Sul, onde mora, à Cidade de Gaza, no Norte, onde estuda. Fica preso nos checkpoints, às vezes horas, às vezes dias.
Não sabe o que é um espaço aberto a perder de vista. Porque em Gaza não há espaço e Mohammad nunca saiu de Gaza.
Tudo o que conhece são estes 40 e tantos quilómetros de comprimento por uma dezena de largura onde se apertaram os palestinianos expulsos por Israel em 1948, se voltaram a apertar ainda mais quando Israel ocupou Gaza em 1967, e ainda mais quando os colonos chegaram.
Dó dos colonos?
Não perguntem a Mohammed.
Ele só quer acreditar que a retirada israelita vai mesmo mudar os seus dias. Os tiros de manhã, os tiros à noite, a demolição das casas, a humilhação dos checkpoints, a claustrofobia de quem não pode passar a fronteira e estar no Egipto, passar a fronteira e ir a Jerusalém, à Cisjordânia, aos países árabes, à Europa. "Gostava muito de ir a Paris, a Londres, a qualquer outro país..."
Anda na universidade a estudar Comércio com uma ideia fixa metida na cabeça, entrar na Polícia, para poder circular livremente. Sair daqui.
E não o demovem as palavras do homem que, nesta praça da Cidade de Gaza, em plena retirada israelita, espera como ele que o checkpoint abra para poder descer a Rafah, e se mete na conversa.
- Todos os muçulmanos têm que estar aqui - protesta o homem, inflamado.
- A Palestina será sempre a Palestina nos nossos corações. Mas a situação pede-nos para sair - responde Mohammed.
Mohammed gostava de estar mesmo feliz, mas sabe que "a situação" não acaba aqui. Que o céu por cima da sua cabeça continuará a ser domínio de Israel. Que o mar lá ao fundo continuará a ser patrulhado por Israel. Que tudo o que entra e sai de Gaza continuará a estar nas mãos de Israel. Tudo o que se mexe, tudo o que se come, tudo o que se usa.
Dó de quem?