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[no dn de hoje]
Quando o criador resolve falar de si sem usar palavras
Ana Marques Gastão
Com Lourdes Castro, René Bertholo foi fundador da revista e do grupo cosmopolita KWY, criados nos finais dos anos 50, em Paris, por meio dos quais os artistas manifestaram a sua irreverência e revolta para com a arte e a política que se faziam em Portugal. Juntaram-se--lhe João Vieira, Costa Pinheiro, José Escada, Gonçalo Duarte, Christo e Jan Voss. O criador de Qui Chasse Qui morreu na sexta-feira, vítima de cancro. Contava 70 anos.
A KWY (as letras que não existiam no alfabeto português) não foi apenas uma publicação experimental em serigrafia, com forte componente poética e, mais tarde, ensaística, que marcou o Portugal desse tempo, nela impôs-se a capacidade inventiva de René Bertholo. A revista (que deu mão a pintores e poetas, já não falando das presenças tutelares de Vieira e Arpad) surge por circunstâncias várias, entre as quais o reconhecimento da impossibilidade de viver da pintura em Portugal. Desde o primeiro número (publicaram-se 12 até 1963) foram, entre outros, princípios do grupo a liberdade criativa, a afirmação da diferença estética, o pluralismo perante a arte do tempo, a solidariedade não coactiva entre artistas-editores e colaboradores, a inventividade coabitando com o divertimento, o jogo.
De formas diferentes, a "lição" do grupo, assumido pela revista, passou para os artistas que nele participaram como Bertholo. Com um longo e coerente percurso estético, iniciado pela investigação na área das técnicas de expressão directa, o artista vem a assumir, sobretudo a partir dos anos 60, uma linguagem neofigurativa na suavidade da sua expressão lírica.
René Bertholo, cuja formação ocorreu na António Arroio, tendo frequentado a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, foi ainda um dos animadores da galeria Pórtico com Lourdes Castro, José Escada, Costa Pinheiro e Teresa de Sousa. Aí, e em mostras várias, afirmou-se uma geração de artistas que maioritariamente optaria pelo exílio.
Aliado a uma herança que remonta a Klee, até pela acumulação de imagens do quotidiano na composição compartimentada, são conhecidas ainda as construções mecânicas de modelos reduzidos de René Bertholo, bem como a sua imagética da infância. Penetrando no território da efabulação, a sua arte dir-se-ia, também, jogo entre a memória e a narrativa misteriosa, o acaso e a confusão, o caos e a harmonia, a cintilação e o ritmo "As coisas são interessantes na medida em que possam ajudar a sonhar de olhos abertos" - disse um dia.
Tudo como se a imagem agisse na dicotomia pormenor/todo ou cada quadro abrangesse uma mundividência surreal, ilusória. Em 1961, René Bertholo realiza os primeiros desenhos e monotipias de acumulação e espalhamento de imagens, associando figuras reconhecidas e abstractas, o que constitui uma contribuição singular no contexto da nova figuração. Uma delas integrou, em 2000, a exposição retrospectiva Making Choices que o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque dedicou ao período 1920-1960 com obras da sua colecção. Participará depois noutras colectivas que marcaram a década de 60, como Mythologies Quotidiennes, no Museu de Arte Moderna de Paris. Os seus objectos com movimento, os "modelos reduzidos", nascem a partir de 1966, interrompendo a pintura sobre tela.
É, no entanto, uma poética do fragmento a sobrevoar toda a obra de René Bertholo - não alheia à influência da banda desenhada -, que joga com perspectivas e ângulos inusuais. Nela se integra também o interesse pelo funcionamento dos objectos, que transportam imagens de paisagens, pelo movimento, pela oscilação entre o real e o artificial, a "verdade" e o onírico. Dividida por diferentes períodos, o tempo anterior à partida para Munique, a permanência parisiense e a produção algarvia, a sua criação tem muito de caligráfico, um quadro saindo de outro quadro "Resolvi começar a falar de mim próprio sem palavras e, no fundo, a minha pintura é isso."
Não pode, aliás, isolar-se o seu trabalho de uma reflexão sobre a passagem do tempo, da ideia de escrita automática, da pintura de sinais e pequenas figuras, da vocação sígnica. Nem tão-pouco pode falar-se de René Bertholo sem lembrar o gosto do artista pelos pequenos engenhos electrónicos - a exemplo de Leonardo -, produtores de som e de luz, algo com muito de artesanal e simultaneamente usando o ruído da vida quotidiana.
Em René Bertholo havia uma certa malícia, a encenação de quem se debruça sobre a realidade com o riso dos lúcidos, brincando com as imagens como uma criança grande. No fundo, lidava com coisas da natureza, mas animando-as. Na aparente desordem, o artista ordenava com minúcia na variação dos elementos repetitivos e, de forma límpida, auto-interrogava-se. Era um intuitivo, consciente de que o rigor é o único condutor da intuição. Pintava de olhos abertos.