11.5.05

#3
[Erica]*

A Erica tem 6 anos e uns enormes olhos pretos, cheios de doçura e curiosidade. Tem a energia e a travessura que a idade lhe impõe. Corre, salta e, ao fim de alguns minutos, não resiste a tentar compreender o estranho que a observa e fala com a mãe.
A Erica, com a ingenuidade dos 6 anos, não percebe porque é que a sua casa, o barraco onde vivia, foi deitada ao chão. A Mãe, que nasceu no bairro onde moram, está desesperada. Grita, chora, faz um discurso sobre a igualdade entre raças e credos, sobre direitos humanos, sobre a importância de ela e todos os vizinhos terem direito a uma casa, porque quem vive debaixo da ponte é o sapo e a estrada serve para os carros...
A Erica olha a mãe e não percebe a intrincada (des)organização que os grandes dão ao mundo. Por ela, tod@s seriam amigos como os meninos e as meninas lá do infantário. Olha a mãe com o rosto carregado, e logo rasga o sorriso traquina. Não sabe onde é que os senhores da Câmara guardaram os seus brinquedos, a sua cama, as suas roupas. Um dia chegou, com a mãe, e o barraco, que era do avô, tinha deixado de existir. Era o palácio dos seus sonhos.
A Erica não sabe quem é e o que é o presidente da Câmara. Não faz ideia de que este se recusa a resposta à mãe e aos vizinhos, que usa uma desculpa burocrata para não se ver obrigado a realojar as pessoas que os serviços camarários estão a pôr na rua.
A Erica tem 6 anos, uns enormes olhos pretos e a inocência que a idade recomenda. Não sei se, um dia, vai ter memória e a noção clara de tudo o que lhe aconteceu por estes dias.
O meu desejo é que sim, que se lembre e que a memória faça dela uma lutadora esclarecida e destemida. Desejo também que a memória nunca seja suficientemente rude para apagar a doçura do seu olhar.



o palácio dos sonhos, agora desfeito


*malditos sejam os burocratas e as razões que os movem