18.11.04

#5
[Livros]


Narrativa 'A SOPA'Uma casa onde se cruzam muitas vidas 'esfarrapadas' Terceiro romance de Filomena Marona Beja Um retrato lúcido da miséria humana
José Mário Silva
In DN, 18 Novembro, 2004

De há uns anos para cá, com a entrada na Europa comunitária e a globalização dos mercados, Portugal sofreu uma metamorfose: o velho país de emigrantes transformou-se num lugar de imigração. Em vez de darmos braços às fábricas francesas, recebemos agora - para construir pontes, Expos e estádios - a força de trabalho, tantas vezes ilegal, dos operários de Leste. Eis uma realidade social nova e bastante complexa, mas com a qual nos defrontamos todos os dias, na rua ou nas páginas dos jornais. Não deixa por isso de ser estranho que a actual literatura portuguesa continue a ignorar, com poucas excepções, um fenómeno que é cada vez mais visível na nossa sociedade.O mesmo se passa, aliás, em relação a outro tipo de existências precárias, como a dos mendigos, sem-abrigo e demais excluídos. Talvez com receio de cair no tão abjurado politicamente correcto ou, pior ainda, num impossivelmente anacrónico neo-neo-realismo, o certo é que a maior parte dos escritores portugueses contemporâneos foge destas temáticas como o diabo da cruz. Na melhor das hipóteses, o assunto surge de raspão, como motor de uma narrativa secundária, ou a servir de «pano de fundo». Quantos romances recentes é que fizeram destes homens e mulheres postos à margem, perdidos ou desencontrados, as suas personagens principais? Meia dúzia, no máximo.Também por isso, A Sopa, de Filomena Marona Beja, é um livro corajoso. Fruto de uma longa investigação de cariz quase jornalístico, em contacto directo com o mundo que descreve, este romance está permanentemente no fio da navalha. Sentimos que em qualquer momento a prosa pode deslizar para o moralismo delicodoce, mas a escrita exacta, tensa e cortante de Marona Beja consegue sempre, in extremis, fugir da emoção fácil e piedosa.A estratégia é clara e surpreendentemente eficaz. Em vez de mostrar a existência problemática de pessoas zangadas com o mundo e com a vida que lhes coube (vistas de fora, à distância), FMB coloca- -nos - a nós, leitores - entre elas, no meio do seu quotidiano, das suas conversas e desabafos, dos seus desejos e quezílias, das suas camaratas e roupas malcheirosas. O que A Sopa tem de mais interessante é precisamente a galeria de personagens: do Victor, um alcoólico com traumas de África, ao Fernando, antigo maluquinho das bicicletas que até nem se importa de aprender, já velho, a trabalhar com um computador; passando pelo enfermeiro Salomão e restante pessoal auxiliar. Isto para não falar das duas figuras centrais e verdadeiros eixos da história: Nela, actriz decadente, tolhida pela osteoporose, a caminho da loucura (citando Yeats, sempre); e Anselmo, o escritor clandestino, observador exímio dos outros e intérprete de um inesperado volte-face final.Todos eles coexistem na Fundação, um antigo depósito de hulha, junto ao Tejo, reconvertido em abrigo, com refeitório e camas feitas. Ali matam a fome e o tédio. Ali se confrontam com os externos, que só aparecem à hora da comida, mas também com dois imigrantes que hão-de ter sortes diversas: Boubacar, bicho-do-mato senegalês; e Kiev, um ex-músico ucraniano de gestos cortezes e má sina.Quando circula pelas memórias das personagens, em ritmo febril, todo frases curtas e elipses, FMB consegue ser excelente. Mas quando força as referências temporais (a questão de Timor, por exemplo) ou faz desastradas alusões meta-literárias (de Gil Vicente a versos de canções de Vitorino) tudo vacila. Ainda assim, cheio de vulnerabilidades, este é um livro atento, intenso, tocante. E necessário.