30.10.04

#3
[paisagem onírica]

A luz, quase perfeita, desenrola perante mim uma cidade diferente da Lisboa de todos os dias.
Entre sacos de hortaliça, o cheiro das últimas sardinhas e os negócios de ocasião, vou-me cruzando com turistas e exploradores, com pesquisadores de alquimias mulitiplas e viajantes, com amantes resplandecentes, com gente feita de tanta coisa.
Ninguém me vê, estou como que rarefeito. Deixo-me vaguear pelos recantos de cada beco, em cada esquina, pelas mesas de café, nas cores quentes das buganvílias e dos ibiscos, nos ramos nús das árvores. Repouso sentado no tejadilho do eléctrico, enquanto passo a mão e afago, distraidamente, a linha do horizonte.
Sem palavras, percorro o espaço entre as gotas da chuva, deixando que o ar frio me acaricie. Experimento a vertigem de ir de mãos dadas com a plenitude.
Por vezes acordamos meio perdidos em nós, mas com a certeza de que os sonhos estão dispostos à maior de todas as transgressões: enfrentar o dia e não ir embora.