#1 [Paleariza]
Foi nas páginas do il manifesto que encontrei uma reportagem sobre um festival de folk grecânico que se realiza, anualmente, na Calábria profunda. Paleariza, nome rugoso, de difícil pronuncia.
Foi um caso de amor à primeira vista, uma fezada, uma certeza imediata - e é tão ter certezas de quando em vez... Depois de ler sobre a (épica) história desta iniciativa cultural, criado durante a década de noventa por um amante da tradição grecânica, tratei de pedir apoio a Lisboa: era preciso uma investigação na rede, para saber se ainda seria possivel colocar a música e a tradição calabresas no mapa da viagem.
A ideia estava lançada, o mais difícil foi mesmo vende-la à minha companheira de estrada, mas a minha exaltação com o acontecimento acabou por contagiá-la.
O festival é composto por concertos, palestras, passeios pedestres e outras actividades, que funcionam de forma descentralizada nas 7 comunas da zona sul da Calábria, prolongando-se por 21 dias. O nosso objectivo era o último concerto marcado no programa, a ter lugar em  Bova superiore, uma pequena aldeia que, mero acaso, até vinha assinalada no meu mapa.
Partindo de Pompeia de manhãzinha, apanhámos um comboio descendente que vinha cheio até mais não. Encaixados no corredor, entre as mochilas, fomos dando uso ao tempo com historietas e deslumbramentos com a paisagem... na costa oeste a linha ferroviária está entalada entre o azul do mar e as suas compridas praias, e as montanhas que se encavalitam, umas nas outras, até perder de vista. Em Paola a geografia faz a curva, passamos a cavalgar pelo peito do pé, vendo, como pano de fundo, a miragem Siciliana a crescer.
Uma pausa para retemperar forças em Régio Calábria e eis que nos surge uma alternativa bastante forte ao folk: o campeonato nacional de braço de ferro, a realizar na mesma noite naquela cidade...
De comboio até Bova Marina, estação perdida na sola da bota. Aqui, tentámos descobrir como chegar oa destino final, a 12 kms de distância. Quando perguntávamos como chegar ao sitio, as pessoas olhavam-nos como quem diz... estes devem ter fugido de um manicómio qualquer!
Só teriamos autocarro na manhã seguinte. Seria tarde demais, era preciso fazer alguma coisa.
Nisto aparece um velho que, depois de conhecer a nossa ideia, decide empenhar-se em dar-nos uma ajudinha... mal sabiamos nós!!
Levou-nos para a estrada que, supostamente, era a única que ia para Bova. Tentou arranjar boleia junto dos amigos, mas o máximo que conseguiu foi umas ofertas de táxi a preços proibitivos... Esticámos o dedo. O trânsito era pouco. A certa altura o nosso amigo lembrou-se que afinal havia outra estrada para Bova, a um km dali, e qeu, por ser nova e moderna, era muito mais movimentada... foi nessa altura que se lembrou também que tinha de ir embora, deixando-nos ali à seca. Ricos amigos...
A nossa sorte foi ter aparecido um tipo que, não indo para Bova, decidiu levar-nos à estrada certa. Chegando ali, e por não ter nada para fazer, acabou por nos levar ao destino final.
Montanha acima, estrada de curvas largas, iamos deitando o olho ao mar, que se mostrava entre figueiras e figueiras da india (com os seus bastardini a abrir-me o apetite), oliveiras e plantações de citrinos.
A C. não parava de celebrar a grandiosidade e beleza de tudo, fazendo uso de um italiano macarrónico que vinha a compondo nesses dias. Eu limitava-me a disfrutar a sensação de sentir nascer em mim aquele sorriso, aquele sentimento de ser pequeno face a tudo, aquela vontade de ver, de correr as estradas e saber a cor de todas as horas do dia naquele lugar.
O nosso acompanhante só perguntava... "quem terá sido o cretino vos levou para a outra estrada?"... palavras para quê?
Ao virar de uma curva, nova surpresa: encavalitada no cimo de um monte, Bova superiore reinava na montanha. A minha fezada começava a ganhar corpo!
Nos próximos capitulos falar-se-á de um castelo normando, de uma noite  estrelada e silenciosa, de um concerto cheio de cor e linguas estranhas, e das revelações de um domingo solarengo em que se tricotaram costumes.