19.6.04

#2
DE CORTAR A RESPIRAÇÃO...

Não só a imagem e a cor desta fotografia são de cortar a respiração, mas também a memória do cheiro e do calor de uma tarde de Setembro em Fez.
Situada no centro do país, nas franjas da cordilheira do rift e antes do médio atlas se impôr, Fez foi uma das capitais imperiais de Marrocos, sendo um ponto de confluência de mercadores e viajantes vindos da montanha, do mar e do deserto, ou seja, um ponto de encontro fervilhante, onde o comércio floresceu e ainda hoje se mantem activo.
A cidadela (medina) de Fez é um enorme formigueiro de ruas estreitas e labirinticas, habitado por algumas centenas de milhar de pessoas, onde a cada porta corresponde, seguramente, uma casa comercial. aqui tudo se vende e tudo se compra, desde os tradicionais tapetes marroquis à contrafacção perfeita do sapato desportivo da moda em Paris.
Esta teia de ruas é cruzada por homens, mulheres, crianças e animais. não existindo muitos cães na cidade - os muçulmnanos não são propriamente apreciadores deste demoníaco animal -, podemos encontrar por alí, para lá dos animais que, depois de mortos, servirão de alimento a toda aquela gente, centenas de burros que servem para o transporte de todos os bens que vêm do exterior, das botijas de gás à Coca Cola.
Os burriqueiros são donos e senhores das ruas. avançam com os seus animais carregados e gritam em altos berros: BALAK; BALAK!!, que é como quem diz: saiam da frente!!! e o melhor é mesmo arranjar um recanto onde nos possamos meter.
Para lá dos bens de consumo, os burros transportam também toneladas de peles para os tintureiros. estes lavoram num espaço que, sendo maior do que um campo de futebol, está coberto de pequenos tanques, cada um com espaço para um ou dois homens, onde se procede à curtição e coloração da pele. os tanques destinados a esta última actividade são os que se podem observar nesta fotografia. distinguem-se dos restantes pela coloração das suas águas, que é conseguida com corantes naturais trazidos das montanhas em redor da cidade. depois de lavoradas, as peles são postas a secar nos terraços de toda a medina.
As tinturarias devem constituir um dos poucos espaços amplos dentro da medina, sendo rodeadas por casas de habitação e, claro está, de comércio, cujas varandas são alugadas por curtos periodos de tempo aos curiosos que queiram ter uma vista previligiada sobre o que ali se vai passando.
Os homens que alí trabalham devem, calculo eu, ter uma vida curta: passam os dias sob um sol abrasador, mergulhados em corantes e água suja - apresentando a sua pele originais tonalidades - e sujeitos a um cheiro de cortar a respiração, tão nauseabundo que só um consumo contínuo de haxixe lhes dá uma certa tolerância olfactiva. organizam-se em cooperativas e repartem entre si o dinheiro oferecidos pelos visitantes que se atrevem a descer àquelas profundezas mal cheirosas... são, seguramente, explorados em cada minuto do seu trabalho, mas apresentam-se sempre de coração aberto, com uma gentileza que lhes está escrita no olhar e que eu não sei transcrever.