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Ler Jornais É Saber Mais
Por JOAQUIM FIDALGO
Publico, 24 de Março de 2004
Há uma terrível guerra em curso no Sudão, e quase ninguém sabe. É uma guerra que não passa na televisão, porque ainda está muito longe da gente (onde fica o Sudão?, bem gostava de ver a pergunta feita a algum/a jovem licenciado/a no concurso Um Contra Todos!), porque não mete americanos, porque os grandes "media", para já, não a descobriram. Mas contam-nos os jornais (alguns jornais...) que é uma guerra trágica, semelhante ao genocídio de 1994 no Ruanda, um outro conflito que os principais "media" descobriram tarde, quando já havia milhares e milhares de mortos, daqueles que dão imagens fantásticas para o World Press Photo. Contava o PÚBLICO de sábado que num só confronto desta guerra entre etnias tinham sido violadas mais de 100 mulheres. E nós que julgávamos que só há guerra no Iraque.
Há números assustadores quanto à sida em muitos sítios de África. Na Suazilândia, por exemplo, 40 por cento da população (40 por cento da população!) está infectada com o vírus. Ali perto, no Botswana, as mais recentes estatísticas foram motivo de satisfação porque a taxa de infecção já é "só" de 37,5 por cento dos habitantes... Soube também pelo jornal. Também não me consta que a notícia tenha passado na televisão. Não é um "evento", não tem historinha dentro, não tem ministro a dizer que, não mostra gente com lágrimas, é longe e custa caro para mandar um repórter ou uma equipa. Aliás, onde fica a Suazilândia?... E o Botswana?...
Cheguemos mais perto, então. Ouçamos a miséria que mora mesmo ao pé de nós, e que não é só a do pedinte que nos toca na paragem do semáforo, pois não haveria semáforos bastantes para dar encosto a todas as misérias do país. Lá dizia o jornal: há, hoje, pelo menos 200 mil pessoas com fome em Portugal. F-O-M-E. E muitas não pedem, nem no semáforo nem em lado nenhum, têm vergonha, revolvem-se-lhes as entranhas quando não conseguem comida para dar aos filhos. "Ninguém sabe o que é eles pedirem-me pão e eu não ter para dar." Pois não, ninguém sabe. Ninguém imagina. E ninguém percebe também como é que 600 mil pensionistas sobrevivem com 208 euros por mês. E esses não são os piores - há 123 mil que só recebem 151,84 euros mensais. E outros 290 mil não vão além de uma pensãozinha de 186,16 euros. Para comer, para vestir, para morar, para tudo. Li no jornal.
Li também de um milhão (um milhão!) de pessoas que não têm água canalizada em casa, que não podem fazer aquele gesto banalíssimo e tão útil de ir à torneira. Sabemos o que custa quando a água falha por umas horitas... E onde se passa isto? Não é no Sudão, não é no Botswana, não, é aqui mesmo, em Portugal. Uma em cada dez pessoas deste país não tem o que nós temos como se fosse a coisa mais natural de se ter neste mundo. Sim, também veio no jornal. E etc.
Há muito quem ache que os jornais deviam dar mais boas, e menos más, notícias. Quem dera. Também há quem ache que o mundo devia ter muito mais boas do que más notícias para serem dadas. Quem dera...