29.3.04

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porque a cantiga ainda é uma arma, estas são histórias que têm de chegar a quem, como eu, nunca as viveu.

I Encontro da Canção Portuguesa - O Coliseu Encheu e Fez de "Grândola" Um Hino

Por POR MARIA GUIOMAR BELO MARQUES
Público, 29 de Março de 2004

Quem lá esteve recorda essa noite como um momento único. Nunca, até então, fora tão clara e publicamente anunciada a agonia do regime. O recurso passou por uma afinação de mais de cinco mil vozes entoadas bem alto e sem medo. Naquele dia, 29 de Março de 1974, tornou-se ainda mais clara a força da urgência de liberdade, a dimensão de uma resistência mais forte do que o medo e a cada vez menor capacidade do regime para impedir o inevitável curso da História. As muitas carrinhas da polícia de choque, que se alinharam entre a Rua Eugénio dos Santos e a Avenida da Liberdade, os muitos pides refastelados na sala, a par dos destacados para os bastidores, não foram suficientes para impedir o inevitável. O cronómetro contou a seu desfavor. E eles sabiam-no, apesar de tudo, com ainda maior rigor do que aqueles milhares que nem quiseram pensar no medo. A PIDE sabia mais e sabia melhor do que ninguém. Muito para além, seguramente, daquelas cordas vocais síncronas do Coliseu, daquele coro que estava determinado em não ser o dos caídos.

Passavam alguns minutos da uma da manhã, quando Zeca Afonso, ladeado por todos os intervenientes do concerto, entoou, pela segunda vez nessa noite, o "Grândola Vila Morena", naquele que seria o momento mais empolgante e simbólico da resistência cantada ao regime. Livres como o vento, os pensamentos, e o poema, uniram-se a uma só voz, como um pré-aviso de que a liberdade estava a passar por aqui. E, também, que não iria ficar-se por ali.

Marcado para as 21H30, não pertenceu a uma má organização, nem a um fatídico atraso português, a responsabilidade por apenas mais de meia hora depois, o espectáculo ter começado. Ao mesmo tempo que, à porta do Coliseu, centenas de pessoas sem bilhete tentavam um ingresso (o mercado negro funcionou deficientemente, mas houve quem, mesmo assim, tivesse conseguido por cinquenta escudos bilhetes de vinte) e, sem sucesso, ali se mantiveram, na esperança de um eco vindo do interior, lá dentro, onde a sala cantava, pacientemente, desconfiada, sem certezas, temas do proscrito Zeca. Talvez nada chegasse a acontecer. Nos bastidores, fervilhantes e empolgados, para os protagonistas as decisões estavam por tomar. Caetano de Carvalho, à data sub-secretário de Estado da Informação e Turismo, confrontava-se com a dificuldade em permitir a actuação de alguns dos artistas, censurando letras soletradas quase como suspiros verso a verso, ou parte destas, ao mesmo tempo que percepcionava uma sala expectante e cuja reacção era imprevisível. Simultaneamente, os organizadores discutiam a solução a dar aos versos cortados e aos temas desde logo proibidos.

Uma inevitabilidade
Negociadas inteligentemente, as soluções foram sendo encontradas. A ninguém interessava o confronto inevitável entre uma assistência determinada em fazer daquela uma grande noite e uma pide receosa, consciente de servir um regime com os dias contados. Quem ia para cantar cantou e quem ia para sublinhar refrões e desaguar poemas calados também o fez.

Tradicionalmente, os Prémios da Casa da Imprensa, atribuídos às diferentes expressões artísticas nacionais e aos seus pares, eram entregues durante um espectáculo que nunca perturbou o regime: A Grande Noite do Fado. Mas, em 1971, num acto de rebeldia então insipiente, ousou uma solução alternativa, e, recorrendo a um elenco mais abrangente e consensual, organizou aquilo a que então chamou "Música Nova", reunindo no Coliseu um conjunto de artistas oriundos de diversas sensibilidades musicais, mas, entre os quais, já então, a chamada música de intervenção pontuava. Três anos depois, foi mais audaz. Sopravam ventos de mudança auspiciosos ao ensejo.

Habituados às entrelinhas, ou seja, a semi-dizer a verdade como fuga à censura, os jornalistas, aos quais hoje se chama no melhor inglês "opinion makers", sabiam o que acontecia e o quanto não podiam contar, o que lhes era cortado pela Censura Prévia, e a melhor técnica para, de forma ínvia, o dizerem. Não é de estranhar, portanto, que formassem uma consciência esclarecida relativamente à realidade que não era dita e muito menos explicada. A Casa da Imprensa, uma Mútua na sua génese, estava, assim, particularmente bem colocada para poder ter intervenções culturais.

O I Encontro da Canção Portuguesa, como a direcção decidiu designar o espectáculo que há 30 anos ajudou a tornar ainda mais fracos os já de si frágeis alicerces do regime, foi um acto de consciência corajosa. José Jorge Letria, organizador e interveniente, na sua qualidade de jornalista "baladeiro", como risonhamente recorda o termo ambíguo que Raúl Solnado glosou no "ZipZip" (o programa televisivo que deu tempo de antena à canção de intervenção, embrulhada num formato sui generis destinado a contornar o status quo do marcelismo) recorda a complexidade que então se vivia, referindo: "Havia uma conjuntura muito complexa, porque já se tinha dado o 16 de Março, tinha saído o livro do Spínola 'Portugal e o Futuro' e a guerra colonial era insustentável. Tivemos dúvidas se deveríamos avançar com este projecto, mas a CI acabou por decidir que sim". Destemida e, até, "com alguma inconsciência relativamente às consequências possíveis", pondera hoje Letria, a CI decidiu avançar.

As autorizações, pedidas com a antecedência regulamentar, foram sendo dadas a conta-gotas. A lista dos intervenientes, facultada com o pedido de autorização para a realização do espectáculo, justificado com a entrega dos prémios, e a garantia de que nenhum deles interpretaria qualquer canção cuja letra não fosse previamente autorizada, originou respostas diversas. Os nomes de Zeca Afonso, integralmente proibido de passar na rádio, e de Adriano Correia de Oliveira originaram um pedido expresso a Caetano de Carvalho, com as garantias inerentes de que não profeririam a mais ténue palavra sem autorização. Os nomes de Paulo de Carvalho, Fernando Tordo, Carlos Alberto Moniz e Maria do Amparo, Rui Mingas e Teresa Paula Brito, mereceram ofício de autorização, embora o primeiro, tal como os dois últimos (Rui Mingas terá tido justificações claras sobre a sua ausência, tal como Duarte Mendes, militar de carreira) não tenham participado.

Sem incidentes
O concerto decorreu no fio do nervo. A assistência, que sabia ao que ia, correspondeu e entendeu as palavras de Mário Cardoso, então presidente da CI, quando explicou: "Para poder apresentar, esta noite, o espectáculo que se vai seguir, a CI teve de vencer obstáculos de diversa ordem, como não é difícil de calcular". Acrescentando, no fim da sua brevíssima intervenção, o pedido de colaboração: "Para que o espectáculo decorra, todo ele, da melhor forma possível. Essa será, estamos certos, a maneira de todos nós garantirmos a possibilidade de nos encontrarmos aqui, novamente, no próximo ano. Contamos, pois, com a vossa compreensão". O presidente da CI fazia, entre linhas, o pedido para que nada manchasse o sopro de liberdade que uma assistência ao rubro, mas infiltrada de provocadores, desejava ansiosamente.

O conjunto Marcos Resende, sem pejo nem fantasmas, aceitou enfrentar uma plateia sequiosa de Zeca Afonso. Injustamente mal recebido, aceitou estoicamente o facto, porque as suas letras não tinham sido sujeitas ao crivo monossilábico da pide. Carlos Alberto Moniz e Maria Amparo seguiram-se-lhe com a verdade das palavras de Zeca, mal entendidas. Manuel José Soares, pouco conhecido cantor de intervenção, ultrapassou com naturalidade a ausência do apresentador desistente José Nuno Martins, e à pergunta do público complacente "como te chamas?", respondeu com naturalidade à chamada.

Depois, sucedeu-lhe o silêncio. A plateia já tinha percebido, nessa altura, que algo se passava. Nos bastidores, continuavam a negociar-se trovas, poemas e cansaços com os sempre omnipotentes e omnipresentes pides. Os assobios e as palmas sincopadas eram-lhes destinadas. Surgiu, então, Carlos Paredes e Fernando Alvim com "Verdes Anos", um dos momentos mais aclamados da noite. A música, mesmo sem palavras, também diz coisas. Mas os censores sempre primaram por temer apenas os textos. E enquanto continuavam zelosamente a impedir letras nos bastidores, Joaquim Furtado, um bem aventurado e destemido substituto de José Nuno Martins, nomeou os premiados (uns ausentes, outros, mais corajosos, presentes), entre os quais dois se destacaram: a produção do álbum "Sobreviventes", de Sérgio Godinho, um exilado cujas músicas conseguiram entrar no mercado discográfico nacional, e Adelino Gomes, cujo trabalho no programa da Rádio Renascença, "Página Um", lhe valeu um desemprego claramente político.

Depois vieram Ary dos Santos, conotado como o letrista dos Festivais da Canção, inicialmente vaiado e pateado, mas cuja pujança poética, declamatória e pessoal, se impuseram, e mais cinco. Mais cinco mil. A Zeca, cantor proibido e odiado pelo regime, permitiram-lhe o "Grândola". Segundo Manuel Freire, ao qual os versos "voaram pela janela" (como explicou na altura) e optou por um lá, lá, lá, preenchido pela assistência, "ele queria cantar uma música com refrão e cantou o "Grândola", que era um tema pelo qual até tinha pouco apreço, mas que reunia as condições". E depois o "Milho Verde". E novamente o "Grândola", num balancear alentejanamente resistente, com todo o Coliseu a acompanhar.

Não houve represálias, ao contrário daquilo que, segundo Letria, seria de esperar. Talvez a explicação esteja nas palavras de Eugénio Alves, jornalista envolvido na organização: "Foi tudo preparado como era possível, com notícias regulares. Já tudo andava no ar, tinha havido o 16 de Março e até Marcello Caetano parecia despedir-se no seu 'Conversas em Família'. Os militares estavam na plateia e depois de pensarem usar o 'Venham Mais Cinco' como senha, optaram pelo 'Grândola'. Este espectáculo serviu para isso e, talvez igualmente importante, serviu, como diria o Zeca, para animar a malta. Que era o que fazia falta."