11.12.03

#2

Uma Parte do Peru pelo Todo
Por EDUARDO PRADO COELHO
Público, 11 de Dezembro de 2003

Os meios de comunicação social deram algum relevo ao facto de ter sido divulgada para todo o mundo a famosa fotografia em que Bush aparece de surpresa junto das tropas americanas e avança pelo refeitório com uma eufórica bandeja de peru nos braços. Soube-se que o soberbo peru não era de carne e osso, mas de plástico.

Na sua habitual crónica do "Diário de Notícias", Luís Delgado sentiu-se ofendido no zelo com que defende intransigentemente as posições americanas e lançou uma réplica indignada: é preciso haver mesmo falta de informações interessantes para que jornalistas de todo o mundo, unidos num estranho e insuportável sentimento antiamericano, e em manifesto conluio, ou pelo menos simpatia, com as forças terroristas, se ocupem do falso peru de Bush.

A estratégia argumentativa de Luís Delgado é curiosamente dupla. Tem uma primeira etapa de tipo epistemológico, que se resume na seguinte interrogação: como saber que o peru é falso? "Ele há pachorra para tudo. Será que o jornalista americano foi meter o dedo no peru? Tentou comer uma perna? Retirou um pedaço para análise posterior? Só mesmo quem não tem nada para dizer, ou escrever, ou comentar, é que se dedica ao peru, colocando-o na categoria merecedora de uma profunda análise política, simbólica, ritualista, do poder factual e mediático." Ponhamos de lado o facto de que Luís Delgado também se dedica ao caso do peru, porque ele poderá sempre argumentar que não é o peru que lhe interessa, mas sim os usos perversos do peru. Mas perguntemos que tem o peru de específico para escapar ao estatuto de objecto de "análise política, simbólica e ritualista". Será que um peru tem menos dignidade ontológica do que um cabrito ou uma lebre, ou mesmo um javali? É verdade que o nome não ajuda, e que aquele "u" final ganha uma dimensão grotesca. E também devemos reconhecer que o peru não é um animal particularmente astucioso ou inteligente. E daí? Não fazemos análises dos discursos de Bush, que tem uma relação com a linguagem particularmente atribulada?

A segunda etapa argumentativa é de tipo político: "Do Iraque chegam todos os dias notícias espectaculares, inquietantes, difíceis, intrincadas, mas nunca sobre um peru presidencial de plástico, ao matéria afim." Falar do peru, acha Luís Delgado, é "perder tempo". Contudo, penso que há uma componente retórica que Luís Delgado negligencia. Este peru não tem interesse em si mesmo, mas como realidade metonímica: é uma parte do peru pelo todo da intervenção norte-americana no Iraque. Por outras palavras, se o peru ganha tanto relevo é porque nele se consubstancia um estilo que a Administração americana promoveu: a realidade não basta em si mesma, é preciso produzi-la e encená-la.

Foi este o caso da mulher-soldado Jessica Lynch, transformada em heroína pelo Pentágono para poder fornecer um argumento para um filme. Tudo falso, como se veio a comprovar. E foi este o estatuto das famosas "armas de destruição maciça", que cada vez mais aparecem como um pretexto claramente encenado para convencer a opinião pública mundial. A questão está em sabermos até que ponto estes reincidentes falsificadores da realidade poderão ser os melhores defensores da verdade democrática.