19.12.03

#2

estive, por motivos profissionais, na doca pesca. devo dizer que foi um experiência sociológica e antropológica do maximo interesse.
enquanto andei por itália, ouvi dizer que a doca estava para fechar, que os pescadores iriam ser despedidos e que, naquele lugar, iria ser construido um empreendimento urbanistico, tipo expo... tudo em nome da taça américa em vela.
mas, azar do destino, a competição lançou ancora em Valencia; parece que os ventos não a trouxeram até mar aberto, não a empurraram para este porto de abrigo das agruras atlanticas que é o tejo...
no entanto, nada alterou as ideias dos especuladores: o valor do dinheiro deixou de ter o disfarce da prova desportiva e do interesse nacional - qual versão aquática do euro 2004 -, mas os 30 hectares de terreno à  beira rio, num local paradisiaco, continuam a ser uma tentação a que não se resiste...
5 mil trabalhadores e trabalhadoras que irão ver o seu posto de trabalho ser substituido por um desenvolvimento aparentemente progressista... alguns serão reconvertidos. mas uma boa parte ficará em casa a lembrar o tempos de maré cheia e de redes esticadas.
além destes homens e destas mulheres de linguajar anguloso - e que, apesar das perspectivas, ainda ensaiam um sorriso- , há ainda outro factor a ter em conta... o desperdicio:
na doca pesca existem edifícos e equipamentos tecnológicos de ponta, com cerca de dois anos, que foram instalados com o dinheiro que a união europeia atribuiu durante as últimas décadas ao nosso paí­s...
estes fundos, destinados a combater assimetrias de desenvolvimento entre os paí­ses da união, serão canalizados agora para o entulho.
no local onde, diariamente, se processada e acondicionada parte da alimentação que, alguns dias depois, tod@s iremos ver no prato, irá surgir, em breve, um espaço de interesse comum, que fará ganhar dinheiro a muita gente e estará na origem da miséria e infelicidade de tant@s outr@s.
Foram estes homens e estas mulheres- @s que circulam e existem no subterraneo do desenvolvimento e do conforto comum- que, com a sua pele queimada e as suas roupas de lutar com o frio e com o mar, me contaram esta e outras histórias, que me falaram no seu linguajar, que me avivaram na memória a sua presença. foi também esta gente, que, sem que tenhamos consciencia, estão presente em cada momento dos nossos dias, me fez voltar ao sangue dos outros de simone de beauvoir ou a primo levi... se isto é um país...