#1
roubei, na e-edição do dnjovem desta semana, um texto napolitano de rodrigo francisco.
Naples Revisited (2003)
hoje podem gritar à vontade, que não estou cá. Podem ligar, escrever, puxar-me pelo braço. Podem ameaçar-me de que se não é hoje então deixa de ser, porque estou-me marimbando para todos vós; não estou nem para a Raquel Loureiro. É que hoje optei por levantar-me às seis da tarde, e é domingo. Aqueci o resto do espaguete seco em cima do fogão, abri uma lata de pêssegos em calda (bebi a calda como se fosse sumo, a acompanhar o espaguete). Saí e cumprimentei a senhora a fumar na janela em frente. Desci à Via Roma. Como é domingo cruzo-me com magotes de gente que choca contra mim e segue sem pedir desculpa. Fico um pouco em frente à Intimissimi avaliando o fio dental de hoje no manequim giratório. Na Piazza Dante ainda não sei que chorarei ali como um menino na madrugada da partida. Na Piazza Dante desta vez não vou de braço dado com o Lello ou com a Olimpia, ou com a Sarah, e os scugnizzi jogam à bola, e os caffone encostam-se às vespas e falam de futebol, de óculos escuros, das apresentadoras da televisão.
De modo que hoje subo ao Gesú Nuovo e nem sequer me detenho nas bancas dos alfarrabistas à procura de uma pechincha roubada de uma biblioteca qualquer, de modo que hoje ignoro as belíssimas estudantes tomando café nas tímidas esplanadas, de modo que hoje levanto a gola do casaco e chego em passo apressado à Piazza Bellini.
Isto tudo
(só hoje)
para cumprimentar o Ciro com dois beijos e ele oferecer-me um café. Eu sei que vocês devem estar fartos de eu vos contar de eu cumprimentar o Ciro com dois beijos e ele oferecer-me um café. Já não podem ouvir falar de eu cumprimentar o Ciro com dois beijos e ele oferecer-me um café.
Pelo que hoje escusam de estar para aí armados em amigos, armados em distracção, armados em Lisboa, porque ele há dias
(cá por coisas)
em que um gajo precisa de acordar às seis da tarde de um domingo em Nápoles e tomar café na Piazza Bellini
(cumprimentar o Ciro com dois beijos e ele oferecer-me um café)
dias em que parece que estás casado há demasiado tempo com Lisboa, e que os cabelos desgrenhados dela acordando a teu lado se vão tornando levemente insuportáveis
dias em que Nápoles te dói com se fosse a cabeça ou um dente.
Ele há dias em que logo de manhã te cresce uma incontornável vontade de estar sozinho, percebes?