27.12.03

#1

há dias em que me sinto de acordo com as pessoas mais estranhas de que me possa lembrar. já estive de acordo com EPC, hoje calhou estar quase na totalidade de acordo com miguel sousa tavares.
há dias em que um homem se liberta, deixando vir ao papel aquilo que guarda com tanto primor. hoje mst soltou o esquerdista que tanto tenta esconder dentro de si. chegou a ir ao congresso do pp para exorcitar tal fantasma; tenta travestir este esquerdismo latente em bom conservadorismo - antítese do mau conservadorismo praticado e defendido por muit@s que aí andam e governam. mas tal intenção, na minha modesta opinião, saiu-lhe frustrada: miguel, dentro de ti há um camarada que se quer libertar e grita!


OS MALEFÍCIOS DO CONSERVADORISMO
Público, 26 de Dezembro de 2003

Quatro questões, que não são propriamente políticas a não ser no sentido lato, mas que passam pela política para serem resolvidas, regressaram recentemente à discussão pública. E em todas elas a discussão foi encerrada antes mesmo de ter começado ou foi liminarmente rejeitada a hipótese de alterar o "statu quo" em benefício de soluções alternativas e, porventura, mais corajosas. Em todas, o conservadorismo de pensamento, que se pretende ser antes um conjunto de "valores" caros à direita, determinou a orgulhosa inflexibilidade ideológica. Refiro-me à política de agravamento das multas e punições por excesso de velocidade no novo Código da Estrada que aí vem, na recusa das chamadas "salas de chuto" (assistidas ou não) nas prisões, a liberalização do consumo de drogas leves e a descriminalização do aborto (ou até mesmo a sua simples despenalização). A todas as sugestões de ensaiar uma via alternativa nestas matérias, a direita que governa respondeu: "Não, não, não e não."

Porquê tamanha teimosia e inflexibilidade? Consideremos a primeira possibilidade: estão contentes com os resultados das políticas até aqui seguidas. Impossível, os números não deixam qualquer hipótese de escamotear a realidade. Os mortos na estrada continuam em números assustadores, o consumo e apreensões de droga aumenta todos os anos, o número de presos por crimes ligados à droga constitui praticamente dois terços do universo prisional, metade deles preventivos e todos continuando a drogar-se dentro das prisões, sendo que muitos se iniciam ou atingem o ponto de não retorno precisamente lá dentro. Enfim, nenhuma estatística indica que o número de abortos clandestinos tenha diminuído desde que a questão foi pela última vez abordada; antes se suspeita do contrário, como o sugere a persistência dos anúncios publicitários diários na nossa imprensa às clínicas espanholas que tratam do assunto sem problemas legais nem riscos clínicos.

Ou seja, não é pela via dos resultados obtidos que os defensores do imobilismo podem sustentar as suas posições. Sem exagerar, é lícito concluir que os resultados, sim, demonstram o total falhanço destas políticas e, em tal dimensão, que é preciso uma profunda convicção ou uma profunda hipocrisia para continuar a defender que não há outras vias.

Sobre a mal chamada "prevenção rodoviária" não me vou alongar, visto que aqui escrevi sobre o assunto há duas semanas. Limito-me a repetir a conclusão de que a eleição do excesso de velocidade como causa quase única dos acidentes tem como resultado (e objectivo) primeiro aumentar a cobrança de receitas do Estado, como resultado segundo manter nas estradas os incapazes ou os assassinos do volante que, todavia, não excedam habitualmente os limites de velocidade, e como resultado terceiro dispensar as autoridades rodoviárias de se preocuparem com as outras causas de acidentes e outro tipo de vigilância, que dá mais trabalho e menos receitas.

A recusa, mesmo após recomendação do provedor de Justiça - na sequência de um longo estudo e de um relatório devastador - da introdução das "salas de chuto" nas prisões é um caso de hipocrisia quase difícil de enquadrar. Conhecemos a mortandade nas prisões devida a casos de sida, de "overdose", de droga adulterada ou de seringas infectadas; conhecemos os resultados positivos que esta medida tem dado em todos os países onde foi introduzida; e, finalmente, não podemos ignorar que, se a droga é assim tão fácil de se obter numa prisão do Estado, é porque há necessariamente um circuito montado para a levar dos fornecedores cá de fora aos consumidores lá dentro. E esse circuito só pode existir, funcionar e manter-se com a colaboração, o lucro ou a conivência de funcionários do próprio Estado. Assim sendo, a recusa liminar da ministra em simplesmente considerar o assunto assume a forma de um crime em si mesmo, que não encontra qualquer justificação nem em valores, nem em ideologias, nem sequer em sentimentos tão simples como a simples piedade para com aqueles que nem lá dentro conseguem escapar às malhas dos traficantes que lá os enfiaram.

A liberalização do consumo de drogas leves é um assunto já tão estafado que a discussão só se continua a justificar pela dimensão crescente da hecatombe que decorre à vista de todos. Por mim, obviamente que não me vejo a condenar à cadeia - e às drogas fortes - um simples consumidor de "erva". Aqui, a hipocrisia é simplesmente total: o que se tem feito para contornar a dificuldade "moral" da solução legalmente em vigor é uma despenalização oficiosa. Existe teoricamente a possibilidade de prisão, mas ela nunca é aplicadas pelos tribunais. Exactamente o que se recusa para o aborto... Quem aqui me segue há vários anos sabe que eu defendo não isso, ou não apenas isso, mas muito mais do que isso: uma espécie de nacionalização do tráfico de drogas duras. Defendo que o Estado comece a concorrer com o mercado e que venda ele também drogas duras, a preço de custo e sem adulteração. Com condições: que os compradores sejam portadores de documento emitido pelas autoridades que os reconheça dependentes; que a venda se faça sob vigilância médica e assistência psicológica e social em locais determinados para o efeito; e que, paralelamente, sejam agravadas as penas para o tráfico de droga clandestino. Já me responderam que é impensável que um Estado de bem possa vender drogas, mesmo sem lucro. Não sei porquê: não cobra lucros na venda de álcool e de cigarros, não favorece a fuga aos impostos no "off-shore" da Madeira, não fomenta a profusão de casinos, ganhando dinheiro com a ruína dos viciados em jogo? Quem é que define quando é que o Estado é uma pessoa de bem e quando é que deve poder estar dispensado de o ser? São os valores íntimos da ministra da Justiça? E porque não os meus?

Temos finalmente o suave milagre do aborto, que não existe enquanto for proibido, para sossego de algumas boas consciências. Já tudo foi dito sobre isso, demasiadas e cansativas vezes. Já todos conhecemos as posições de todos, que no essencial se resumem a duas: a dos que acham que a criminalização do aborto dos outros é um problema e um dever que lhes impõe a sua consciência, e a dos que acham que o aborto é uma questão da consciência de cada um, com a qual os outros não têm que ver. Pessoalmente, só lamento que a forma profundamente estúpida como a esquerda tem conduzido sempre esta questão, recorrendo aos mais imbecis argumentos do mais imbecil femininismo dos anos 60, tenha desembocado no fastio que levou tanta gente que era a favor da despenalização a abster-se e a conduzir à derrota no referendo de há uns anos atrás. De outro modo, a questão já estaria resolvida, sem termos de aturar mais os argumentos das piedosas senhoras e sacras meninas do outro lado.

São quatro exemplos de "mau" conservadorismo - porque também existe o bom, ao contrário do que sustentam placidamente algumas cartilhas de pensamento pronto-a-vestir. São quatro exemplos de como uma hipocrisia erigida em pseudovalor moral pode causar danos concretos, mortes incluídas, às vítimas desses valores. Em nome do Estado, em nome da moral cristã ou - pior e nunca dito - em nome, muitas vezes, de interesses de negócio instalados, por exemplo na lavagem de dinheiro da droga ou na pretensa recuperação dos drogados. Santíssima hipocrisia!